A consciência vale por mil testemunhas”
– Quintiliano
A consciência é, antes de tudo, o lugar originário onde o ser se manifesta à interioridade de um sujeito. Não se trata de uma função mental acessória, mas da própria condição de possibilidade de toda experiência e de toda realidade humana. [1] LAVELLE, Louis. A Consciência de Si. São Paulo: Centauro, 2004. p.43. Desde os primórdios da filosofia, pensar a consciência é buscar compreender como o homem se situa no mundo e diante de si mesmo. Louis Lavelle, ao falar da presença como estrutura fundamental do espírito, inaugura uma metafísica da consciência que não a reduz à representação, mas a afirma como ato participativo no Ser. [2] LAVELLE, Louis. La Présence Totale. Paris: Aubier, 1934. p.18.
Para Lavelle, a consciência é presença ao ser, uma abertura ontológica na qual o homem participa da realidade de maneira imediata e criativa. [3] LAVELLE, Louis. A Consciência de Si…op. cit., p. 87. Essa concepção recoloca o tema da consciência no horizonte da espiritualidade. A consciência não é um simples reflexo das coisas exteriores, mas o centro onde o absoluto pode ser acolhido. [4] DEUSDARA, Branca. A Consciência como Presença: Lavelle e a interioridade espiritual. Revista Filosofia Capital, v. 8, n. 1, 2015, p.55. Tal perspectiva se opõe ao psicologismo moderno, que transforma a consciência num jogo de imagens, esquecendo sua vocação metafísica de presença e de liberdade. Olavo de Carvalho, por sua vez, identifica na crise moderna uma deformação da consciência que perde seu eixo transcendente. Ele propõe a consciência como um ponto de interseção entre o conhecimento e a responsabilidade moral. Não se trata apenas de saber, mas de estar presente ao verdadeiro. [5] CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. 6. ed. Campinas: Vide Editorial, 2015. p.117. A consciência, para Olavo, é um ato espiritual que exige fidelidade ao real [6] CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1996. p.48. , e, por isso, está inseparavelmente ligada à noção de verdade como adequação do espírito à ordem do ser. [7] HERVÉ, Francis. O Problema da Verdade em Olavo de Carvalho. In: Cadernos de Filosofia Brasileira, n. 22, 2017, p.104.
Essa ordem do ser, porém, não se impõe como uma estrutura cega, mas como uma presença inteligível que exige ser reconhecida. Mário Ferreira dos Santos explora essa ideia com sua “lógica concreta”, onde a consciência é vista como um processo de participação no logos do real. [8] SANTOS, Mário Ferreira dos. Lógica e Dialética. São Paulo: Edições Logos, 1964. p.91. Para ele, todo ato consciente é uma integração da inteligência ao ser das coisas, o que implica não apenas estrutura lógica, mas também uma ética do pensar. A consciência, nesse sentido, é uma modalidade do ser em processo. [9] FONSECA, Lucas. A Filosofia Concreta de Mário Ferreira dos Santos. In: Revista Prometeus, v. 14, n. 27, 2021, p.112. Husserl, com sua fenomenologia, radicaliza a descrição da consciência como intencionalidade: toda consciência é consciência de algo. Esse “algo” não é dado em si mesmo, mas na correlação com a estrutura intencional do sujeito. [10] HURSSEL, Edmund. A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.151.
Husserl retira a consciência do terreno da subjetividade psicológica e a reconduz ao papel de fundamento de todo sentido. [11] HUSSERL, Edmund. Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p.84. A crise das ciências modernas, para ele, nasce da perda da consciência como fonte de significação e de orientação do mundo da vida. Zubiri oferece uma complementação poderosa à fenomenologia ao propor que a consciência não se reduz a mera intencionalidade, mas é “inteligência sentiente” — ou seja, o ser humano apreende a realidade numa estrutura unitária onde o sentir e o inteligir são indissociáveis. [12] ZUBIRI, Xavier. Inteligência Sentiente: Inteligência e Realidade. São Paulo: Loyola, 2006. p.52. Para Zubiri, a consciência é a atualização do real no homem, não como cópia, mas como realidade impressiva. Assim, a consciência é uma maneira de ser afetado pela realidade, ao mesmo tempo em que se compromete com ela. [13] ZUBIRI, Xavier. Sobre la esencia. Madrid: Alianza Editorial, 1985. p.89.
Dostoiévski, embora não sistematize uma filosofia da consciência, oferece uma meditação existencial insuperável sobre ela. Nos seus personagens, vemos a consciência como palco do bem e do mal, da escolha entre a graça e a perdição. [14] LOSURDO, Domenico. Dostoiévski e Nietzsche: o abismo do niilismo. São Paulo: Unesp, 2012. p. 146. Aliócha, Ivan e Raskólnikov não são apenas figuras morais, mas consciências em crise, desafiadas pela presença do absoluto. [15] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2008. p.312. A consciência, em Dostoiévski, é lugar de revelação, angústia e decisão, onde o drama metafísico do homem se torna palpável. [16] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Editora 34, 2001. p.40. Eric Voegelin aproxima-se desse horizonte ao afirmar que a consciência humana é o lugar do “metaxy”, isto é, o entremeio entre o tempo e a eternidade, entre o finito e o infinito. [17] VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1994. p.47. A consciência é, para Voegelin, a abertura do homem à ordem do ser, que se manifesta como experiência de transcendência; sendo, também, o fundamento da história e da política. [18] VOEGELIN, Eric. Anamnesis. Columbia: University of Missouri Press, 1978. p. 64. Contra as ideologias modernas, que enclausuram o homem na imanência histórica ou material [19] SANTOS, Rogério M. dos. O Conceito de Metaxy em Voegelin. In: Revista Brasileira de Filosofia da Religião, v. 2, n. 2, 2015, p. 87. , Voegelin reabilita a consciência como dimensão pneumática — a alma aberta ao Logos.
O denominador comum entre esses autores é a recusa em reduzir a consciência a uma estrutura funcional ou evolutiva. Todos reconhecem nela um mistério originário, que remete à própria estrutura do ser. A consciência é sempre mais do que percepção: ela é lugar de mediação, de decisão, de encontro com o sentido. Onde a consciência se corrompe, instala-se a mentira, a desordem e o niilismo. O colapso da consciência não é uma simples falência cognitiva, mas uma queda espiritual. [20]Ver: LAVELLE, Louis. La Dialectique de l’Éternel Présent. Paris: Aubier, 1945. p. 119.; VOEGELIN, Eric. Anamnesis… op. cit., p. 72.; ZUBIRI, Xavier. Inteligência Sentiente… op. cit., … Continue reading Pensar a consciência, portanto, é mais do que descrever processos mentais: é assumir uma responsabilidade ontológica. A consciência não é um espelho neutro, mas uma luz que pode iluminar ou obscurecer o real. [21] A analogia da consciência como um chama que ilumina, cresce e se desenvolve é bem comum na filosofia de Lavelle. Ver: LAVELLE, Louis. A Consciência de Si. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 18. Daí a exigência ética que a acompanha: conhecer é comprometer-se. É por isso que, em Lavelle e Olavo, o conhecimento exige purificação da alma; em Zubiri e Mário Ferreira, exige adesão à estrutura do real; e em Husserl e Voegelin, exige fidelidade à experiência originária do sentido.
Assim, a consciência é liberdade. Mas não liberdade arbitrária, e sim liberdade enraizada no ser. É liberdade como resposta — como responsabilidade diante de algo que nos antecede. Essa resposta se dá tanto na forma de conhecimento como de ação moral. No fundo, a consciência é a capacidade do homem de dizer “sim” ou “não” ao chamado do ser. É esse poder de resposta que Dostoiévski dramatiza em seus romances, e que a filosofia deve recuperar em toda sua gravidade. Em torno do conceito de consciência, reunimos metafísica, ética, fenomenologia, espiritualidade e literatura. Cada autor aqui evocado mostra uma face do mesmo mistério: o fato de que o homem é, por sua consciência, um ser em relação com o absoluto. [22] SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia Concreta. São Paulo: Logos, 1959. p.178. Recuperar essa dimensão é tarefa urgente numa época em que o homem parece querer esquecer-se de si mesmo. Onde a consciência é negada, o humano adoece. Onde ela é cultivada, o ser renasce. É um apelo, um “ resgate da realidade” que Voegelin já anunciava como urgência contra as ideologias mortais da modernidade. [23] VOEGELIN, Eric. Reflexões Autobiográficas. São Paulo, É Realizações, 2007. p.143.
References
↑1 | LAVELLE, Louis. A Consciência de Si. São Paulo: Centauro, 2004. p.43. |
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↑2 | LAVELLE, Louis. La Présence Totale. Paris: Aubier, 1934. p.18. |
↑3 | LAVELLE, Louis. A Consciência de Si…op. cit., p. 87. |
↑4 | DEUSDARA, Branca. A Consciência como Presença: Lavelle e a interioridade espiritual. Revista Filosofia Capital, v. 8, n. 1, 2015, p.55. |
↑5 | CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. 6. ed. Campinas: Vide Editorial, 2015. p.117. |
↑6 | CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1996. p.48. |
↑7 | HERVÉ, Francis. O Problema da Verdade em Olavo de Carvalho. In: Cadernos de Filosofia Brasileira, n. 22, 2017, p.104. |
↑8 | SANTOS, Mário Ferreira dos. Lógica e Dialética. São Paulo: Edições Logos, 1964. p.91. |
↑9 | FONSECA, Lucas. A Filosofia Concreta de Mário Ferreira dos Santos. In: Revista Prometeus, v. 14, n. 27, 2021, p.112. |
↑10 | HURSSEL, Edmund. A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.151. |
↑11 | HUSSERL, Edmund. Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p.84. |
↑12 | ZUBIRI, Xavier. Inteligência Sentiente: Inteligência e Realidade. São Paulo: Loyola, 2006. p.52. |
↑13 | ZUBIRI, Xavier. Sobre la esencia. Madrid: Alianza Editorial, 1985. p.89. |
↑14 | LOSURDO, Domenico. Dostoiévski e Nietzsche: o abismo do niilismo. São Paulo: Unesp, 2012. p. 146. |
↑15 | DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2008. p.312. |
↑16 | DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Editora 34, 2001. p.40. |
↑17 | VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1994. p.47. |
↑18 | VOEGELIN, Eric. Anamnesis. Columbia: University of Missouri Press, 1978. p. 64. |
↑19 | SANTOS, Rogério M. dos. O Conceito de Metaxy em Voegelin. In: Revista Brasileira de Filosofia da Religião, v. 2, n. 2, 2015, p. 87. |
↑20 | Ver: LAVELLE, Louis. La Dialectique de l’Éternel Présent. Paris: Aubier, 1945. p. 119.; VOEGELIN, Eric. Anamnesis… op. cit., p. 72.; ZUBIRI, Xavier. Inteligência Sentiente… op. cit., p. 98. |
↑21 | A analogia da consciência como um chama que ilumina, cresce e se desenvolve é bem comum na filosofia de Lavelle. Ver: LAVELLE, Louis. A Consciência de Si. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 18. |
↑22 | SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia Concreta. São Paulo: Logos, 1959. p.178. |
↑23 | VOEGELIN, Eric. Reflexões Autobiográficas. São Paulo, É Realizações, 2007. p.143. |