Para Allport, há uma influência tanto hereditária quanto ambiental na formação da personalidade, o que implica numa complementação equilibrada entre aquilo que foi herdado e aquilo que foi aprendido. Herdamos o físico, o temperamento e a inteligência, mas o ambiente pode favorecer ou não a ampliação ou diminuição desses elementos que fogem ao controle – e é exatamente por isso que não existe uma personalidade igual a outra, porque cada pessoa é única e singular. Diferente de abordagens que enfatizam o Inconsciente sobre o Consciente, como é o caso da Psicanálise, Allport acreditava, teoricamente, em duas personalidades – uma mais primitiva e voltada para as necessidades mais baixas do ser humano e de caráter mais reflexivo (infância), e outra mais elaborada cujo aspecto psicológico detinha maior influência (vida adulta).
Dessa forma, não havia uma relação causal necessária entre questões não resolvidas no passado, sobre o presente ou futuro, de um indivíduo, justamente porque as necessidades da infância são diferentes das de um adulto maduro e saudável. Somente as pessoas anormais sofreriam essa influência do passado, enquanto as pessoas normais, de personalidades sadias, teriam a capacidade de deixar no passado aquilo que já aconteceu – e que não tem força ativa no presente. Essa diferença que Allport exemplifica – entre a personalidade normal não ser influenciada pelo passado – é baseada no seu conceito de Motivação ou Autonomia Funcional dos Motivos. Segundo Allport, os indivíduos emocionalmente saudáveis não são funcionalmente influenciados por experiências passadas porque os motivos originados no passado se tornam autônomos no decorrer do tempo, isto é: o indivíduo não faz determinada coisa pelo mesmo motivo de antes, mas pelo que esta ação causa nele.
Assim, uma criança que foi obrigada a aprender um instrumento pelos pais, mesmo sem gostar, caso continue realizando aquela prática, irá aperfeiçoar-se naquela arte e, consequentemente, sentira-se bem consigo mesmo ao perceber que é habilidoso no que faz – gerando um sentimento de autoestima e uma autoimagem positiva. Portanto, o motivo original que levou a criança a realizar aquela ação não está mais presente como força, uma vez que o motivo agora é autônomo e causa outros efeitos. Outro exemplo muito claro, usado pelo próprio Allport, é o da semente e da árvore. Apesar da árvore depender da semente para se desenvolver, quando a árvore atinge seu potencial máximo, ela não depende mais em nenhum grau da semente, porque agora é funcionalmente autossuficiente, autônoma; a semente não tem mais poder sobre aquela.
Dentro dessa concepção da importância do conceito de motivação para Allport, resta abordar sua teoria propriamente dita, a saber: a teoria dos Traços da Personalidade. Para Allport, os indivíduos possuem traços que expressam como se dará o comportamento – a maneira como cada indivíduo se comporta. A definição de traço que Allport deu foi bastante precisa sobre isso: “[…]predisposições a responder igualmente ou de modo semelhante a tipos diferentes de estímulos […] os traços são formas constantes e duradouras de reagir ao nosso ambiente”. [1] SCHULTZ; SCHULTZ, p. 198 Dentro dessa classificação, Allport dividiu os traços entre “comuns” e “individuais”, mas foi forçado a mudar devido a possível confusão com os termos, chamando os primeiros apenas de “traços” e os segundos de “disposições pessoais”.
Dentro dessas disposições pessoais, ele dividiu em três subdivisões: cardinais, centrais e secundários. Um traço cardinal é aquele que mais se destaca no indivíduo, expressa bem características únicas de alguém; geralmente as pessoas são reconhecidas entre os amigos e conhecidos por causa desses traços devido a força que possuem; os traços centrais não possuem a força dos cardinais, mas são também relevantes e costumam aparecer em grande número no comportamento do indivíduo; já os traços secundários são os fracos e surgem em situações muito específicas, porém não são constantes e podem sofrer alterações facilmente.
TEMPERAMENTO E PERSONALIDADE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
Fazendo um panorama da teoria de Allport, notamos alguns pontos importantes: ela enfatiza o consciente ao invés do inconsciente; o presente e o futuro e não o passado; o singular ao invés do geral; visa a personalidade normal ao invés da anormal. O homem nasce com aspectos inatos que influenciam o seu comportamento, mas também é afetado pelo ambiente, pela cultura e o social. Indivíduos normais possuem uma personalidade madura e não sofrem com vivências do passado – a não ser que essas forças se tornem motivos no presente, caso contrário, esses motivos são autônomos. Comparando esse apurado, junto com a própria definição de Allport para a personalidade, notamos uma aproximação com o que diz Marsili: “A personalidade é, portanto, o que há de mais íntimo, individual e intransferível em nossa pessoa”. [2] MARSILI, 2018, p. 127
Ambos os autores enxergam a personalidade como algo estritamente individual e impossível de generalizar, porque diz respeito às vivências de cada um, implicando no modo como cada um recebe e devolve ao mundo essas experiências. O incremento dado por Allport aos aspectos hereditários como o físico, a inteligência e o temperamento representam, de certa forma, os únicos elementos que são passíveis de semelhança. Dois irmãos têm 50% de chance de herdarem o físico do pai ou da mãe, possibilitando que ambos sejam altos ou baixos, ectomórficos, mesomórficos ou endomórficos – para usar a terminologia de William Sheldon –, ter a mesma cor de pele, cabelos e olhos dos pais.
Porém, quando falamos de personalidade, estamos nos referindo a todas essas partes que formam um todo muito maior – a qual não se confunde com essas mesmas partes. Os elementos ambientais que moldam os elementos inatos são muito diferentes, e impactam cada indivíduo de maneira única. Usando novamente o exemplo dos irmãos, é aparentemente evidente que a mesma frase dita pela mãe pode ser recebida de forma diferente em cada filho, e nesse aspecto podemos usar os temperamentos como possível causa, porque são aqueles elementos comportamentais inatos ao próprio indivíduo – a maneira espontânea dele reagir sem passar pelo filtro da razão.
“Nesse sentido, a personalidade em nada se identifica com os temperamentos. Os temperamentos são apenas quatro; logo, necessariamente milhões de pessoas têm o mesmo temperamento. Entretanto, não existe uma personalidade igual a outra: cada um tem uma vida e, já que a personalidade é a resposta individual que se dá ao mundo, são inúmeras as possibilidades de respostas – de personalidades”. [3] Op.cit Allport não entendia os temperamentos da forma como foram explicados neste artigo. Para ele, o temperamento sofria influências do meio e, com isso, era moldado, alterado em sua forma – como o barro é moldado pelo artesão. Isso difere da visão de Marsili, que confere ao temperamento um caráter fixo, de imutabilidade.
Ninguém é capaz de mudar o próprio temperamento, ou possuir mais de um – como afirmam LaHaye e Hock –, mas é capaz de se educar para adquirir as tendências virtuosas dos outros temperamentos. O sanguíneo pode aprender a ser mais perseverante em tudo que faz, e mais pé no chão, enquanto o melancólico pode aprender a viver mais no presente e menos no passado, como também ser mais otimista e se permitir sonhar. Apesar de Marsili concordar com Allport no aspecto singular e individual da personalidade – algo impossível de generalizar ou classificar em grupos -, eles divergem quanto à noção de temperamento como algo a ser moldado, passível de alteração.
Para Marsili, o temperamento é algo anterior à personalidade e, por isso mesmo, fixo. Está não apenas no aparelho psíquico, mas em todo o corpo – é uma estrutura mineral, é o solo, a base de todo o desenvolvimento psíquico vindouro e, consequentemente, da personalidade. Não há personalidade sem um temperamento, porque é por meio do temperamento que as inclinações naturais se manifestam no comportamento. Portanto, para Marsili, são coisas distintas, que se movem de maneiras distintas dentro da formação humana. O conhecimento do temperamento é fundamental para o melhor desenvolvimento da personalidade, porque dele vem as inclinações inatas, as reações naturais e espontâneas.
Nesse aspecto, notamos uma semelhança com o que diz LaHaye sobre a diferença entre temperamento, caráter e personalidade. O caráter é o temperamento educado pelo que vem de fora, pelo ambiente; sem essa educação, cada temperamento, ao seu modo, terá a tendência natural de buscar satisfazer o prazer e evitar a dor, como qualquer outro animal. Por isso, Marsili discorda de Allport sobre temperamento ser um elemento capaz de sofrer mudanças, porque as respostas dadas por cada indivíduo são únicas e irrepetíveis, refletindo a personalidade, enquanto as respostas semelhantes entre centenas de milhares de indivíduos refletem o temperamento – que são apenas quatro e, por isso mesmo, passíveis de repetição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi discorrido, nota-se a importância do conhecimento dos temperamentos para o estudo da personalidade, considerando que todo conhecimento que o homem tem de si mesmo o ajuda a enfrentar melhor seus vícios – dando-lhe ferramentas capazes de orientá-lo melhor sem a necessidade de depender constantemente de terceiros para gerir sua vida com saúde. Nenhum conhecimento serve por si mesmo sem que isso não ajude o homem a melhorar-se, pois, do contrário, corre-se o risco de perder os objetivos mais nobres que o ser humano vem buscando desde séculos passados – alquimia do homem, a busca simbólica por transformar chumbo em outro, o homem baixo no homem elevado, virtuoso. De forma semelhante, é o estudo da personalidade. Não havendo uma intenção de melhorar o homem, através de virtudes e afastamento dos vícios, de ordenar a vida ao invés de viver na desordem, não há muito sentido em explicar como se forma a personalidade – não há um telos (fim) nobre na busca, uma tentativa de elevar o homem ao patamar que lhe pertence por natureza.
Portanto, o estudo dos temperamentos e da personalidade devem intencionar esse melhoramento do homem através de práticas virtuosas e da autoeducação, na medida do possível, visando um caráter robusto e alguém digno de educar pelo exemplo. Entretanto, o objetivo deste artigo foge aos moldes acadêmicos tradicionais, gerando possíveis limitações na aceitação da questão – justamente por usar uma bibliografia mais filosófica do que científica. Aqui não há testes ou outras ferramentas quantitativas, mas apenas os dados oferecidos pela história da filosofia e, em parte, da medicina clássica. Como dito na introdução, falar sobre temperamentos sob um olhar simbólico é, atualmente, academicamente inviável – porque são dois tipos distintos de “olhares” sobre o mundo, e, infelizmente, eles não convergem em sua imensa maioria.
O que é dito por um, é recusado pelo outro. Não faz sentido para a ciência moderna um homem ter características, ou modos-de-ser, “semelhantes” aos quatro elementos da natureza – porque isso não é ciência no sentido moderno, mas tradicional. O olhar cientificista tem, por método, a secção da realidade para estudá-la em fragmentos e, por sua vez, o simbolismo faz exatamente o oposto – ele, por considerar que isso se aproxima mais da realidade, une todas as possibilidades de sentido que um único objeto possui. São modos de olhar o mundo opostos. O pedido de suspensão de juízo, também feito no começo do artigo, tinha a intenção de permitir, na medida do possível, que o leitor, mais familiarizado com os moldes acadêmicos modernos, não fosse pego de surpresa pela maneira como o objeto de estudo foi abordado.
Por fim, recomenda-se que o estudo dos temperamentos e da personalidade sejam considerados sob a clássica visão metodológica desenvolvida pelos filósofos e médicos gregos – em especial Aristóteles, Hipócrates e Galeno -, baseada na observação empírica. Assim, como Allport explica sobre a constância dos traços cardinais – mais evidentes – necessitar de tempo para serem percebidos como constantes, o modo como se comporta cada temperamento é comprovado empiricamente com base na observação – e isso requer determinado tempo em contato com o outro.
Na clínica, lidando com adolescentes e adultos, além dos seu seis filhos, Marsili extraiu o conhecimento empírico para embasar a teoria clássica de Hipócrates, percebendo que as pessoas se comportavam de maneira diferente – pois eram únicas e irrepetíveis –, mas também possuíam comportamentos parecidos, tendências previsíveis que permitiam a classificação em grupos. Os tipos humanos são repetíveis, e Hipócrates viu isso ainda em seu tempo, assim como Aristóteles e Galeno.
Autores modernos, como Eysenck, tentaram reformular a teoria dos quatro humores ou temperamentos com o olhar cientificista; porém, como dito acima, os dois modos de investigação sobre a realidade – simbolismo e cientificismo – são opostos por metodologia. Isso significa que qualquer tentativa de se debruçar sobre esse tema, com determinado método, implicará num recorte, reduzindo ao que o cientista ou pesquisador deseja descobrir. Por tanto, sob o prisma do simbolismo, os temperamentos necessitam menos de recorte e mais alargamento da observação, algo mais poético no sentido clássico.