Um pensamento vigoroso não se limita a grandes divagações, elucubrações e insights, mas pela capacidade de fixar as ideias no tempo e no espaço sem titubeios. Não significa autoafirmação e muito menos fechamento intelectual, mas “convicção ontológica”. Tal convicção é pautada tanto nas realidades suprassumas, como o Divino, quanto nas realidades das coisas mesmas. A convicção de que há uma verdade imutável – sendo a verdade, por natureza, imutável – no ser de cada coisa, precisa encontrar sua retomada. Ter convicções seguras, hoje em dia, é mais que uma urgência, é regra de sobrevivência. O homem, mesmo que categoricamente afirme o contrário, não poderá deixar de ter convicções preconcebidas. A ideia de um pensar sem prerrogativas já é uma prerrogativa. O ciclo é vicioso, e o pensamento não pode escapar de si mesmo.
Que as ideias são inatas na alma, segundo Platão, é algo a ser bastante discutido, e todas as discussões podem enriquecer o debate. Mas a questão é outra. Não se prende somente ao tema gnosiológico. O que nos interessa, no fundo, é a natureza da coisa mesma, ou seja, sua consistência ontológica. O pensador G. K Chesterton, que viveu entre a metade do séc. XIX e início do séc. XX, parece concordar com as premissas levantadas acima. No capítulo 4 de seu mais famoso livro “Ortodoxia”, ele analisa a fraqueza do homem de seu tempo em não sustentar uma ideia por muito tempo, visto que a moda era trocar de ideia como se trocava de roupa. Assim, o ideal relevante seria aquele que mudasse conforme a conveniência.
Vejamos, nas palavras do próprio Chesterton: “… Na moderna controvérsia surgiu o hábito imbecil de argumentar que este ou aquele credo pode ser seguido em uma época, mas não o poderá ser em outra“. [1] Chesterton, 2018, p.115 Por incrível que pareça, caro leitor, esta doença afeta profundamente também os nossos dias atuais. O homem contemporâneo, ante a realidade, não consegue fixar uma ideia, um credo ou uma visão sincera de si mesmo. Este mesmo homem está sempre a fugir da própria realidade e, nesta fuga, agarra-se a qualquer nova ideia do momento. Nesta metamorfose de convicções, o homem relativiza o que o transcende, absolutizando apenas o que consegue ver e tocar fisicamente. A Moral, por exemplo, torna-se simplesmente questão de opinião , e é relegada ao sabor das paixões. Ora, “o que é bom para um não pode ser igualmente bom para outro” e vice-versa, diz o homem atual. E o mais estarrecedor é que a realidade é forçada a caber em cada nova ideia. Portanto, não há uma ideia fixa para que cada realidade a ela se adeque.
Chesterton expõe essa dificuldade muito bem, no capítulo 6 do mesmo livro, ao comentar que “… Não estamos alterando o real para ajustá-lo ao ideal; alteramos o ideal: é mais fácil“. [2] Chesterton, 2018, p.160 O avanço tecnológico/científico tem transformado o mundo – e trazido melhorias no quesito qualidade de vida humana. À exemplo deste fato é que, atualmente, temos ferramentas de última geração no diagnóstico, prevenção e cura de várias doenças; mais mobilidade urbana, nacionalmente e internacionalmente falando; produtos tecnológicos de comunicação revolucionários, como os celulares, tablets, computadores etc.; dentre outros passos importantes.
No entanto, todo este avanço não foi capaz de tirar o homem da sua confusão moral, e devolvê-lo a um ideal fixo. Pelo contrário, a facilidade no acesso às melhorias sociais importantes parece ter enfraquecido ainda mais suas já escassas convicções. O “mundo das facilidades” é o novo ideal. E quanto mais fácil, melhor. Quanto mais serviços estiverem ao alcance de um click ou de um toque, menos se preocupará com uma ideia bem definida. Com isso, a impressão é que o homem atual procura avidamente salvar a vida material.
E eis um contraste latente: enquanto o homem se esforça em desalinhar sua vida de qualquer ideia ou crença necessária, imutável, seu apego à vida enquanto matéria, e ao que ela pode lhe proporcionar, cresce na mesma proporção. O que significa, em última análise, que o homem ainda continua acreditando em algo, mesmo que este algo seja finito, limitado. Ainda assim é uma ideia a ser alcançada, apesar de perder-se nessa busca. Deste modo, o homem atual encontra-se como um barco à deriva em pleno oceano, perdido de sua rota e levado ao sabor das ondas.
Ainda no capítulo 6 da “Ortodoxia”, Chesterton é muito claro ao afirmar que “Quanto mais desorientada estiver a vida do pensamento, mais a vida da matéria ficará abandonada a si mesma“. [3] Chesterton, 2018, p.161 Neste sentido, suponho que o leitor já tenha notado que, nossa discussão, portanto, busca evidenciar uma realidade essencial: uma ideia não pode estar desencarnada do homem que a concebe e, muito menos, poderá sustenta-la por muito tempo alheia à própria vida. Caso contrário, o homem estará fadado ao fracasso espiritual e existencial.
Em um excelente artigo, escrito por nosso colunista William M. Torquato, intitulado “A Concepção de Homem em Miguel de Unamuno” [4] https://jornalcidadaniapopular.com.br/a-concepcao-de-homem-em-miguel-de-unamuno/ , lemos exatamente o que acabamos de afirmar acima, a saber: o homem que pensa é “o homem de carne e osso”, portanto, é ele mesmo que, em sua concretude, vive enquanto pensa e, de igual modo, pensa enquanto vive. Nas palavras do próprio filósofo Miguel de Unamuno, “esse homem concreto, de carne e osso, é o sujeito e o supremo objeto, ao mesmo tempo, de toda a filosofia”.
Frise o caro leitor que, o ponto central da nossa temática está na coerência que o homem atual precisa encontrar entre a ideia e a realidade – sobretudo quando, em nossa contemporaneidade, prega-se uma noção de verdade relativa, ideias líquidas e convicções extremamente subjetivas. Aspectos esses que alienam o homem da realidade que o cerca, afastando-o daquilo que é essencial, bem como privando-o de conhecer-se a si mesmo.
Portanto, este artigo, em suas breves considerações, pretende servir como um alerta e um convite, ao homem atual, a se posicionar contra todo ideal que o desumanize – e o desvirtue da busca da verdade. Chesterton, como vimos, já percebera, em seu tempo, o quanto o homem de sua geração, influenciados por falsos ideais, distanciavam-se da realidade – embrutecendo suas mentes. Em nossos dias, o abismo espiritual, apesar de ser o mesmo, parece ter tomado proporções gigantescas – dado o que nos revela a própria realidade, onde o homem, além de ter perdido o alinhamento do intelecto com a vida, perdeu, sobretudo, o sentido da própria vida.
References
↑1 | Chesterton, 2018, p.115 |
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↑2 | Chesterton, 2018, p.160 |
↑3 | Chesterton, 2018, p.161 |
↑4 | https://jornalcidadaniapopular.com.br/a-concepcao-de-homem-em-miguel-de-unamuno/ |