Certa vez o padre Royo Marín fez a seguinte afirmação: nós não estamos passando por uma crise política, mas sim por uma crise de Santos. Dito em outras palavras, estamos vivenciando uma crise de pessoas que não sabem amar. O tempo todo estamos nos comparando, uns com os outros, com nosso passado e até mesmo nos comparando com situações futuras. Segundo, Heidegger [1]HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Maria Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes. 4 ed, 2009 , o nosso “ser comunitário” Miteinandersein, espelha-se sem cessar uns nos outros. Pegamos emprestado gestos, opções, gostos, modos de agir e pensar; é uma “contaminação perpétua”. Diante disso, surge-nos uma pergunta: como me distingo dos outros? Como tentativa de responder esta pergunta Heidegger afirma que a vida do homem está acontecendo entre dois polos, o “ser” e o “dever ser” Daisen. O constante atrito que surge da tensão entre esses dois polos é o que garante ao homem a manutenção da sua individualidade.
Partindo desta situação existencial, de que estamos o tempo todo nos comparando com os outros e que esta comparação nos modela, quando nos encontramos com o outro, verificamos que estamos diante de um ser, com qualidades, virtudes, ações e defeitos. Dito isso, abre-se uma possibilidade de interpretação: ou o admiro como igual a mim ou superior a mim, e termino por amá-lo; ou invejo-o profundamente e termino por odiá-lo. O encontro com nossos iguais, ou superiores, termina no amor ou na inveja, e, posteriormente, no ódio. Imagine um mundo onde se ganha pontos por odiar um, amar o outro – e vice-versa – , assinar reputações e, até mesmo, cometer homicídios, tudo isso em busca de um “bem maior”, “combater fake news” e “ atos antidemocráticos”. Imaginou?
Esse mundo que de imaginário não tem nada, caminha a passos largos para sua total consumação, com o apoio incondicional das classes intelectuais, religiosas e meios de comunicação. Guardada as devidas proporções, as mídias sociais assumiram o papel que antes pertenciam às Ágoras, como palco de discussões e encontros das classes falantes da época. Após a Primeira Guerra mundial, com o fim formal das monarquias, instauram-se as democracias – que por natureza é um regime fundado em torno da massa, da opinião pública e do Estado laico. Dessa forma, a função sacerdotal é usurpada das mãos da Igreja e passam a fazer moradia nas redações de jornais.
A mídia – sacerdotisa tem sua própria doutrina, ritos de purificação e expurgo; interpreta os fatos segundo seu próprio interesse como numa paródia demoníaca do Sagrado Magistério. Ditando no coração desatento do homem moderno o que deve sentir, qual tipo de percepção ele deve ter diante dos fatos ( vai acreditar em mim ou no que os seus olhos estão vendo?), em suma, a pregação falada nos púlpitos virtuais é a do anti-amor. A mídia faz esse papel de mediador, usando palavras vazias, dando novos conceitos a palavras já existentes, mantendo atual o “index”, porém, desta vez, não são somente livros que são proibidos de serem lidos, mas pessoas, grupos e ideias.
Através da mídia, o ódio passou a ser um objeto de culto, organizado e propagado sistematicamente. Esse ódio passa a ter algumas características específicas como: a) o objeto, pessoa ou ideia, deve ser detestado de modo tenaz visando sua total aniquilação, vide a “cultura de cancelamento” – que não é nada mais do que uma tortura virtual; b) o ódio é justificado “cientificamente”, pois a mídia fala em nome da verdade e não admitem “fake news”; c) distorcer fatalmente a verdade e cultivar de maneira perene meias-verdades; d) rebaixar pessoas e classes em detrimento dos vigários – midiáticos, pois eles, sim, são os porta- vozes da Revelação.
Para concluir, termino com um trecho de Gabriel Liicceanu: “ Numa sociedade atomizada e desunida, em que a admiração está em vias de desaparecer, o sucesso de alguém já não pode ser avaliada em termos positivos, o ódio é que passa a ser o sucesso; é odiado, logo, existe.” [2]LIICEANU, G. (2014). Do Ódio. Campinas: Vide Editorial.