No conto “O Sonho de Um Homem Ridículo de 1877” [1]Fiodor Dostoievski – O Sonho de Um Homem Ridículo. Editora: Antofágica 1ª edição 2021. , do romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o protagonista e narrador é alguém que apresenta, para ser misericordioso, uma visão de mundo caoticamente niilista e deplorável. Quando chegamos ao clímax do conto o personagem tem um sonho e, a partir das reflexões advindas desse sonho, uma epifania existencial lhe toma de assalto, e todas (ou quase todas) as características de conduta desprezíveis desaparecem ou são bastante atenuadas, mas o foco do nosso mergulho será exatamente nessas características miseráveis.
Quem já leu a obra sabe que sua estrutura ficcional é genial e sua estética inebriante – tanto que, a posteriori, intelectuais do século XIX que viriam a se debruçar conceitualmente sobre a temática dos sonhos, como o Dr. Freud [2]Freud – A Interpretação dos Sonhos, Obras completas volume 4. Editora: Companhia das Letras, 1ª edição 2019. (1856-1939), reconheceram o valor que o conto do romancista russo continha não apenas sob os pontos de vista que eu enfatizei, e fiz questão de demonstrar que são nevrálgicos, sem entrar no mérito das conclusões psicanalíticas.
O Homem Ridículo confessa ao leitor partes de sua personalidade, e perspectivas sobre si mesmo, extremamente intimas e nada positivas – como se ele fosse um fiel em um confessionário ou um paciente deitado em um divã de um consultório terapêutico, contando o quão profano ele foi na última segunda-feira (estilística particular da forma doisteviskiana de divagar sobre a psique humana). Isto posto, agora iremos pôr a agulha entre a unha e a carne. Relendo o referido conto de Dostoiévski, eu tenho, nas explanações iniciais sobre o personagem, percepções semelhantes ao reler, apenas a título de exemplo, inúmeros trechos de “A Rebelião das Massas de Ortega y Gasset” [3] Ortega y Gasset – A Rebelião das Massas. Editora: Vide 1ª Edição, 2015. (1883-1955). É como se ambos os autores tivessem escrito as respectivas obras ontem, descrevendo o homem contemporâneo do século XXI com seu iPhone em mãos – porém, com abordagens distintas e analisando aspectos diferentes.
Afirmo aqui que, no início do conto, o Homem Ridículo de Dostoiévski tem uma conduta que, na prática, leva aos mesmos descaminhos do homem da modernidade – mesmo que por motivações diferentes. Todavia, não confundam, tampouco sintam-se ultrajados; eu jamais diria que o cidadão médio tem uma afinidade filosófica consciente com a tradição niilista – que encantou os jovens russos no século XIX – ou que a conduta se aplica, ipsis litteris. A minha afirmação diz respeito às semelhanças práticas entre ambos, que, com uma análise um pouco mais profunda, tornam-se mais palpáveis ao leitor.
Esclarecido isto, demonstrarei de forma análoga em três pontos: o personagem sofre de grande melancolia, comum aos niilistas, e de uma extrema baixa autoestima – paradoxalmente somadas a um sentimento arrogante de quem conhece uma suposta verdade a qual os outros desconhecem, por, supostamente, serem inferiores cognitivamente. Esse tipo de comportamento é percebido quase que instintivamente nas diversas tribos, divididas por algoritmos, que estão presentes nas mídias sociais – onde o cidadão contemporâneo oculta sua baixa autoestima, permitindo que sua individualidade (que tem questões sociais e genéticas singulares) seja absorvida por uma coletividade, que lhe dá um falso suporte psicológico. Coletividade essa que sempre acredita deter uma verdade aquém da capacidade intelectual de outros grupos – seja no âmbito político, social, filosófico, científico institucional, etc.