Ao Mestre, sempre e eternamente, a quem devo tudo que sou, e que serei um dia
Caros amigos – que são alunos do COF -, caros leitores, caros estudiosos da obra do Professor Olavo de Carvalho. Confesso que é com uma imensa tristeza que escrevo este artigo. Por quê? Porque eu deveria tê-lo feito enquanto o Professor ainda estava em vida. Sei bem que o Professor Olavo tinha consciência de que a Filosofia de um Filósofo só é plenamente descoberta, e desenvolvida, quando este já não está mais presente. Sei bem disso, mas ainda não consigo deixar de guardar este sentimento de que deveria ter feito mais, poderia ter feito mais. Era madrugada de terça feira, 25 de Janeiro, quando recebi a notícia da morte do Professor Olavo. Estava sentado nesta mesma cadeira em que estou agora, com o livro aberto do Mário Ferreira dos Santos, porque havia tido uma ideia da ordem de estudos da Enciclopedia Filosofica – e queria muito que o Professor a visse. Eis que recebo a notícia de sua morte. Meu mundo havia caído. Nada mais fazia sentido.
Passado alguns dias, decidi me reerguer. Pensei: “temos de fazer algo, pois não é possível que a grandiosidade do Olavo se perca no tempo como a do Mário se perdeu”. Bem, comecei a revisitar o COF – e a cada aula, que eu revisava, uma certeza pulsava em meu coração: havia ali uma unidade, um ponto central, um princípio “arquimédico” (na linguagem do Mário Ferreira dos Santos), que funda o COF, mas não só ele, como também todo o projeto Filosófico do Professor Olavo de Carvalho. Foram dois meses de uma pesquisa vasta, árdua e laboriosa. Neste tempo, dedico-me a este artigo com a seriedade que ele merece. Foram revisitados inúmeros cursos avulsos, artigos, apostilas, cursos antigos, livros antigos, livros novos, e diversas aulas do COF. O Professor Olavo de Carvalho dizia que a Filosofia de um Filósofo busca não produzir textos, mas sim Filósofos. Como eu dizia em minha carta de despedida [1] Disponível em:https://jornalcidadaniapopular.com.br/ao-mestre/ , Olavo de Carvalho vive em cada um de nós, seus alunos – pois nós somos a prova da grandiosidade de sua obra, de sua Filosofia.
Este artigo tenta mostrar o que era a Filosofia do Filósofo Olavo, a sua prática Filosófica, o seu Filosofar. Para tanto, é preciso dar algumas advertências: I – Este artigo, longe do que parece, não visa dar uma palavra definitiva sobre o assunto, mas ao contrário: é um ponto inicial da investigação, um exame dialético do Filosofar. Sendo assim, não estamos querendo dizer o que ou quem foi o Olavo, mas sim tentar puxar uma maior organização de sua obra, do que ele entendia dela mesma, e do que o escapava, ou como ele mesmo dizia: do horizonte de consciência; II – decorrente do exame dialético que é, este artigo convida a todos os estudiosos e alunos a fazerem a experiência filosófica, dialogar, debater, discutir, revisar, o tema, indo mais longe na difusão, ampliação, e aprimoramento, da Filosofia do Professor Olavo;
III – buscaremos aqui trabalhar o Olavo Filósofo, em sua técnica Filosófica. De certo que o Professor Olavo foi um educador, um homem que trouxe pessoas de volta à Igreja, o homem que quebrou uma hegemonia tirânica na cultura, e tantas outras coisas. Mas, Olavo se definia como Filósofo, e praticava a Filosofia como a definia. Portanto, este é um convite para que os demais alunos saiam um pouco da repetição – de que o Olavo converteu pessoas, as ajudou, trouxe novas ideias à cultura, etc -, e passem a trabalhar a Filosofia do Filósofo Olavo. Não podemos permitir que um homem desse tamanho, dessa grandiosidade, seja esquecido em seu Filosofar;
IV – a Filosofia do Olavo é vasta, complexa, e muito esparsa. Coube-nos, assim, uma imensa limitação metodológica do objeto de pesquisa. Era impossível que uma pessoa só, em apenas dois meses, abarcasse toda a obra do Professor – desde os anos 80 até sua morte. Portanto, tivemos que fazer uma seleção no material investigativo, de maneira a considerar as aulas do COF mais relevantes, e dando prioridade em ordem decrescente a: livros mais antigos, cursos avulsos, livros mais novos, apostilas, artigos; V – a intenção aqui é mostrar o horizonte de consciência do Olavo – como ele entendia a Filosofia, e a sua Filosofia -, assim como as influências filosóficas que ele considerou, ou as que lhe escapou; VI – o objetivo final deste trabalho é dar ao estudioso uma base mais organizada da Filosofia do Olavo, de maneira a facilitar o seu contato com o Filósofo;
VII – como estamos falando de um Filósofo – e, como o Mário Ferreira dos Santos nos dizia, não se lê filosofia sem fazer filosofia -, é inevitável que haja uma certa mescla do meu próprio filosofar com o do Professor Olavo. Advertimos que tentaremos minimizar isso ao máximo, mas que também o próprio Professor Olavo entendia que essa era a tarefa natural do Filósofo: ver além da filosofia que está a ler.
Pois bem, dado as advertências podemos partir para o nosso assunto. O Professor Olavo definia a Filosofia como “a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice versa”. [2] COF, aula 01 Já vi, muitas vezes, alunos repetindo essa frase, mas acho que a profundidade dela não é bem entendida. Como o nosso título sugere, ela é o princípio fundante do COF, e de todo o projeto filosófico do Olavo. Podemos dizer [3] E isso ainda ficará provado ao longo deste artigo que a “unidade do conhecimento na unidade da consciência” diz respeito ao Ser e conhecer; ser é conhecer, e conhecer é, de certo modo, ser. Podemos também dizer que ela diz respeito a Anamnese do ser. Os Escolásticos usavam a expressão “ato de ser”, ao que eu diria que, para o Professor, essa unidade seria senão a forma [4] forma entendida aqui como princípio intrínseco cognoscitiva de ser. A “unidade substancial” humana, a “Alma Imortal”, é sempre cognoscitiva – princípio metafísico do seu ser, que não cessa jamais, em nenhum momento, de ser.
Segundo o Professor Olavo: “… esbocei os princípios de uma nova ontologia, remotamente inspirada na teoria da informação e na qual deve ser reabsorvida, perdendo toda independência, a teoria do conhecimento. Essa ontologia do conhecimento, sob aspectos variados e mais ou menos ocasionais, é o que pretende o presente livro”. [5] Carvalho, Ser e Conhecer, 2000, p.10 Vamos então buscar o que seria essa “ontologia do conhecimento”. Nos diz o nosso Mário Ferreira dos Santos: “ Uma verdade ôntica é uma verdade que está no ser; quando em acto no intelecto é uma verdade ontológica, Ôntica, portanto, pertence a imanência do ente , e ontológica a imanência do ser, captada transcendentalmente. Em nossa linguagem filosófica, diríamos que ôntico refere-se a toda esquemática imanente ao ser… tomado como facto de ser, extra mentis, independente do intelecto… E ontológico refere-se a tal esquema noético, (logos do ontos) à esquemática captada pelo intellectus in actu”. [6] Ferreira, 1957, p.12
Assim: “a Ontologia procura penetrar na intimidade do ser, na sua realidade mais íntima, na sua exuberância concreta, desassociando-se, pela atividade noética, mas jamais esquecendo de devolver à sua concreção o que, por aphairesis, foi separado… os primeiros filósofos gregos procuravam na observação do mundo o que apontasse a arquê, ser, princípio de tôdas as coisas… O objeto formal da Ontologia é a formalidade, a forma do ser”. [7] Ferreira, 1957, p.13-23
Já o conhecer é a ciência Gnoseológica, “pois é um saber teórico do conhecimento… Podemos precisar o conceito de gnosiologia como a disciplina que filosoficamente estuda, sob todos os aspectos possíveis, o conhecimento humano… a Criteriologia seria a Gnosiologia, na parte em que aprecia o valor dos nossos conhecimentos, quando ela enfrenta o tema principal e final, que é o da verdade”. [8] Ferreira, 1958, p.35-36
Em nossa linguagem filosófica, diríamos que o Professor Olavo desenvolve uma visão filosófica que é a forma cognoscitiva do ser, princípio cognoscitivo do ser, à verdade do ser – ambas relacionadas pelo conhecer. O homem conhece sempre – é sempre capaz de conhecer – á verdade do ser, porque o seu ser é cognoscitivo [9] Que tem a capacidade ou o poder de conhecer, ver: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/cognoscitivo Conforme formos avançando isso se tornará mais claro, mais firme.
Evidenciaremos, ao longo deste artigo, de onde vem esse método do Professor Olavo, seus paralelos e seus distanciamentos. Por hora, cabe-nos elucidar 7 Filósofos que consideramos a base, o centro, da influência [10] Influência essa que, como dissemos, abarca tanto o horizonte de consciência do Professor, como aquilo que o escapa Filosófica do Professor Olavo: Mário Ferreira dos Santos, Louis Lavelle, Pe. Stanislavs Ladusãns, Eric Voegelin, Xavier Zubiri, Andre Marc e Pe.Álvaro Calderón. [11] Entendido aqui como representante do neotomismo Isso não significa dizer que apenas estes foram os Filósofos mais importantes na prática Filosófica do Professor Olavo. Tanto é assim que deixamos de lado Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Edmund Husserl, Leibniz etc; e o fizemos pois – além de não podermos abranger a totalidade dos Filósofos, e das obras, que o Professor Olavo estudava, e que o influenciava – é de saber corrente que tais autores eram importantes em sua Filosofia. Assim , buscamos selecionar aqueles Filósofos como ponto central do seu Filosofar. [12] Ponto este que será justificado e demonstrado – deixando sempre aberta a possibilidade para colegas, e estudiosos, revisarem, acrescentarem, ou confrontarem, tal averiguação.
Como mencionamos no ponto VII, há sempre um Filosofar ante um estudo filosófico, o que poderia suscitar, em nossos leitores, uma pulga atrás da orelha se não estaríamos falando de nossa própria Filosofia mais do que a do Professor Olavo. É por isso que iremos dividir este artigo em capítulos, usando o capítulo I como demonstração de como o Professor Olavo entendia a técnica Filosófica – expondo também como é legítimo buscarmos essa organização, essa unidade e coerência, em seu Filosofar.
Capítulo I – Justificação da técnica Filosófica
O primeiro desembaraço a ser feito é a questão da organização, da coerência, da Filosofia. É bem verdade que o Professor Olavo sempre foi contra uma visão sistemática, doutrinal, da Filosofia. Mas, por isso mesmo, é preciso fazer a distinção entre sistemático e sistêmico. Para o Professor, toda Filosofia tem de ser sistêmica, mas não sistemática. Antes de entrarmos neste assunto, é preciso explicitar a questão do horizonte de consciência do Professor Olavo. Como um Filósofo, em sua investigação filosófica, está examinando um terreno desconhecido da experiência, certas partes da realidade escapam à sua visão – ao menos aquela expressavel verbalmente. Uma dessas coisas foi a relação do paralelo entre a visão do Mário Ferreira, sobre a estética como Filosofia, e a visão do Professor Olavo da Filosofia como uma alma individual que, para obter um senso de orientação, tenta analisar a totalidade da experiência – a qual nunca é alcançada em sua totalidade.
Assim, o Professor Olavo nos diz: “Vocês podem se perguntar, em vista do que expus, quanto disso devo a um Eric Voegelin ou a um Mário Ferreira dos Santos. A resposta é nada. Claro que tenho fontes filosóficas às quais eu devo: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e o Vedanta; apenas estes. Dos filósofos mais recentes eu aproveitei um pouquinho do Edmund Husserl, mas não foi muito. Os conceitos fundamentais foram tirados diretamente da experiência e frequentemente usei expressões ou termos que tirei deste ou daquele filósofo. Mas dívida substantiva só tenho com Platão, Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Duns Scott, Santo Agostinho e o Vedanta. Não vejo outras fontes nas quais eu possa ter bebido… É claro que sempre se aproveita alguma coisa de autores que a gente comenta, mas não vejo como eu possa ser visto como um discípulo ou continuador do Mário Ferreira ou do Eric Voegelin. A minha linha de investigação é muito diferente e ela já estava delineada muito antes que eu os conhecesse”. [13] COF, aula 82
Por esse final, ficará claro para o leitor que o Professor Olavo expressava verbalmente a palavra “dever”, no sentido de ser um continuador, um discípulo, de uma doutrina filosófica, de uma corrente, ou de uma escola filosófica. E nada mais natural que isso, pois ela decorre da aversão que o Professor Olavo tinha à Filosofia como sistematização de escolas dogmáticas. Para o Professor, essa era a causa da profissionalização da Filosofia – que tinha como decorrência a falsificação da experiência real, do testemunho do Filósofo.
Porém, como dissemos, essa terminologia expressa verbalmente aquilo que o Professor conseguia traçar do seu horizonte de consciência. Isso não significa que o Olavo não sabia do paralelo da sua visão com a do Mário, mas sim que – por decorrência da impossibilidade linguística do Filósofo expressar, verbalizar, aquilo que examina na consciência – há uma defasagem na comunicação do que se evidenciou, presenciou, na unidade da consciência. É preciso retomar a experiência do Filosofo na própria totalidade da experiência – de onde ela partiu. Façamos então essa retomada.
Diz o Professor Olavo: “O motivo principal de eu não fazer uma exposição sistemática da minha filosofia é que eu sou contra a exposição sistemática. Uma filosofia é sobretudo um exame, uma análise crítica das cosmovisões. Cosmovisão é uma concepção do cosmos que nós recebemos mais ou menos pronta da nossa sociedade e que sempre tem esta ambição totalizante… A filosofia jamais tem essa pretensão totalizante. Ela só pode examinar determinados pontos da cosmovisão, analisando-os criticamente, e ela não visa jamais a substituir a cosmovisão”. [14] COF, aula 89
Agora vamos ao Mário Ferreira: “O verdadeiro é o que se coaduna com esse conceito de perfeição que formamos como uma meta a ser atingida, cuja exatidão nunca sentimos alcançar, porque é da natureza humana do conhecimento a insatisfação, que anima o homem a procurar sempre”. [15] Ferreira, 2018, p.118 Para ambos, a Filosofia é um impulso à totalidade, a perfeição do ser, mas que nunca chega à sua totalidade; há uma busca constante, insatisfeita, um exame que se faz e refaz – sem nunca alcançar a totalidade do ser. Continua o Professor: “Quer dizer, pelo próprio fato de ser uma concepção do cosmos, ela abrange tudo o que você pode conhecer, e nós podemos dizer que a cosmovisão só encontra a sua expressão integral na cultura inteira na qual você está. Mesmo quando há uma superposição de culturas, como acontece hoje, existem no mínimo algumas cosmovisões em disputa, mas cada uma delas com uma pretensão totalizante”. [16] Op.cit
Sobre a Cosmovisão, é preciso introduzir a concepção do Mário sobre a estética como valor. No último capítulo do livro “Filosofia e Cosmovisão”, o Mario vai mostrar que a Cosmovisão está diretamente ligada a uma experiência estética, e, assim como o Professor Olavo, ele a entendia como “alma” da cultura. “Os valores estéticos são apreendidos diferentemente. Ora, há quem os apreenda intensamente, com maior ou menor grau. Isto serve para mostrar que há uma relatividade, não dos valores propriamente, mas do contemplador e do realizador da obra. Os valores estéticos variam na história quanto a sua apreensão. O que numa época é atualizado noutra não o é, ou o é menos. Dessa forma, vemos o caráter histórico da própria arte, que reflete também a alma de um artista, de um povo, de uma era. Há valores descobertos por um artista que só gerações futuras estão aptas a compreender. Esses fatos têm levado muitos a julgarem que há uma relatividade dos valores, quando, na verdade, há uma relatividade do sujeito que os apreende”. [17] Ferreira, 2018, p.268
Para o Mário, a apreensão do valor estético é relativa, porque o criador da obra não é capaz de contemplar toda a perfeição do ser. Esse criador, esse artista, seria, pois, o Filósofo, no exame crítico da experiência. Ora, aquele que examina a realidade é um indivíduo, uma “alma” individual, em busca de uma orientação nessa totalidade. Para o Olavo, a Filosofia é uma tentativa que se faz e refaz, mas que nunca chega à totalidade mesma do ser – porque depende sempre da capacidade da personalidade em experimentar a unidade do real à consciência. Fica fácil entendermos como essa consciência varia de uma época à outra, de uma cultura à outra – e isso toca naquilo que o Professor Olavo chamava de “extrusão” e de “registro da cultura”. [18] Aos quais trabalharemos mais à frente. Assim, a Filosofia não pode tomar o lugar da Cosmovisão, não pode ser sistematizada, pois ela é a tentativa da consciência de examinar a totalidade do ser.
O Professor ressalta que: “Então, a filosofia pode parecer sistêmica pelo fato de que a própria razão é no fim das contas um senso de totalidade. Mas senso de totalidade é uma coisa, totalidade é outra. Quer dizer, você está se dirigindo a uma totalidade e unidade não quer dizer que você vai alcançá-la… na filosofia nós sabemos que não estamos lidando como uma imagem direta; nós estamos lidando com uma intermediação mental, quer dizer, uma atividade mental que você está exercendo em vista de corrigir ou aperfeiçoar essa cosmovisão, até de rejeitá-la completamente”. [19] Op.cit Podemos ver então que a Filosofia é uma atividade da consciência para alcançar, obter, um senso da totalidade, mas que, por esse senso estar sempre se corrigindo na totalidade, nunca chega à perfeição do ser.
Sobre isso, nos diz o Mário: “A arte é a manifestação do homem como criador. Todos nós temos a ideia de algo que é o supremo dos nossos desejos, o perfeitamente desejado, a beleza suprema. Arte é essa constante aproximação, realizada em obras pelo homem. Todo verdadeiro artista tem um ideal de beleza que deseja concretizar, atualizar, tornar real. Esse atualizar, esse passar da potência ao ato, da mera possibilidade à realidade, é criação. O artista é um criador”. [20] Ferreira, 2018, p.122 Ora, a obra é portanto a aproximação, a pretensão, da perfeição do ser, da ideia do Supremo, do desejo a totalidade da experiência. Assim, a obra, o sistema, a doutrina, jamais pode ser a Filosofia de um Filósofo.
E salienta o Professor Olavo: “Então, embora orientada por uma noção de razão como senso de totalidade … a filosofia não visa a alcançar esta abrangência descritiva de uma cosmovisão. Por isso mesmo, ela não tem como ser apresentada sistematicamente… Se eu defini a filosofia como a unidade do conhecimento na unidade da consciência, então é necessário você saber que o seu esforço filosófico de unificação de todos os conhecimentos que você tem, dos conhecimentos disponíveis, é ao mesmo tempo, concomitante e inseparavelmente, a busca de uma forma mais perfeita para a sua alma individual. Mais perfeita quer dizer, em primeiro lugar, mais integrada – não há tantos pedaços separados; todas as partes prestam satisfação a um centro… Esta é a unidade da nossa personalidade”. [21] Op.cit
A Filosofia é uma procura, de uma personalidade consciente, pela contemplação unitária da totalidade do real. Ela é como uma contemplação, uma visão, da estrutura inteira do real, como objeto artístico ou estético. É por isso que: “… as cosmovisões, que também se apresentam a nós como fatos — fatos da ordem histórica, fatos de enorme duração, de enorme abrangência, mas no fim das contas nada mais que fatos”. [22] Op.cit
Pois bem, a Filosofia, para o Professor Olavo, não substitui a Cosmovisão, mas sim a analisa. Isso quer dizer que uma das funções da Filosofia é analisar o fato, seja qual for a sua abrangência, enquanto fato. Dessa forma, nos diz o Mário que: “O filósofo é uma espécie de supervisionador de todo o conhecimento; é quem liga um fato isolado à cadeia dos fatores maiores, procura a relação que prende, que associa uma ideia a outra, um fato a outro”. [23] Ferreira, 2018, p.117 Para o Professor Olavo: “Por outro lado, nem toda filosofia pode evitar completamente o impulso sistemático, porque é próprio da razão ser o senso da totalidade na sua relação com as partes. Então, ela é um esforço de unificação que nunca chega a ser realizado, e que, para não se perder em especulações puramente lógicas… tem que constantemente confrontar esse impulso totalizante e sistemático com a coerência interna da própria alma na sua experiência real”. [24] Op.cit
Vejamos então o que o Mário diz sobre isso: “Um dos problemas mais importantes da filosofia coloca-se aqui: é o do conhecimento… Dessa forma a filosofia é constantemente chamada para examiná-los… o problema da verdade está sempre presente. Até onde é verdadeiro o nosso conhecimento?”. [25] Op.cit A Filosofia examina o conhecer, porque a verdade do ser está sempre presente na presença mesma do ser, da totalidade do ser. O Filósofo é aquele ao qual tenta realizar a unificação de uma experiência consciente da presença do ser, sem jamais ter a sua totalidade.
Continua o Professor: “E é por isso mesmo que eu digo que a filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Ou seja, é uma tendência para a unidade, e não a realização da unidade, e essa tendência vai em duas direções opostas: vai na direção da máxima generalidade e na direção da máxima individualidade, ao mesmo tempo, o que é a mesma coisa que dizer que o lugar onde está a verdadeira filosofia é na alma do indivíduo real e concreto, e não nos sistemas filosóficos. Os sistemas filosóficos são apenas testemunhos ou partes de um esforço cognitivo que é eminentemente individual”. [26] Op.cit
Vejamos o que o Mário diz: “Estudemos agora a essência do belo… O belo é apreendido imediatamente, sem necessidade de um conhecimento, nem reflexão. Quando olhamos uma obra de arte, tomamos o belo, apreendemo-lo sem necessidade de raciocínio, e, quando olhamos demoradamente uma obra que ainda não nos provocou essa emoção, aguardamos até que, quando menos se espere, ele nos surja… o belo é supraindividual… o belo não é relativo; é belo. Independe do indivíduo… Esse algo, que é belo, não está no quadro, é um valor estético… O valor vale. Nós intuímos o valor por uma intuição não sensível; portanto, direta”. [27] Ferreira, 2018, p.267
Para quem esteja familiarizado com a Filosofia do Professor Olavo, essa citação final deixa claro como a influência do Mário estava presente em sua visão filosófica – mais até mesmo do que o próprio Professor afirmava. Vamos aqui tentar dar uma maior claridade ao assunto. O belo é um valor, logo é ser. As coisas tem ser, assim como as coisas belas têm valor. O belo, como valor, é uma presença, que é apreendida por uma alma individual, pela unidade da consciência. Ela é um testemunho do indivíduo, à sua própria consciência, do que experimenta da unidade do real. Como evidência, ela é individual, numa experiência direta da presença à consciência.
Ao mesmo tempo, a presença, a verdade do ser, é a unidade do real – a presença do ser na totalidade mesma do ser. Ela é, portanto, supraindividual, pois o indivíduo é consciente – dá testemunho – de uma experiência, e não da totalidade da experiência. Assim, para o Professor Olavo, a Filosofia não está na obra de um Filósofo, mas no Filósofo mesmo – na sua tentativa de unificar a experiência consciente da presença do ser, da unidade do real.
“A reflexão filosófica exige, assim, uma espécie de apreensão estética da vida mesma, e ela começa, precisamente, no ponto em que essa apreensão, ao defrontar-se com aquilo que na realidade é absolutamente inestetizavel, encontra o seu próprio limite e requer a entrada em cena de uma superior estratégia cognitiva… O uso do termo “estético” também não deve induzir ao erro de supor que se trate de uma apreensão meramente contemplativa, “desinteressada”, pois ela inclui necessariamente a autoconsciência do sujeito enquanto inseparavelmente cognoscente, agente e paciente no drama universal aí apreendido. Enfim, sem uma certa integração estética da visão pessoal do mundo, o acesso à filosofia está bloqueado”. [28] Carvalho, Ser e Conhecer 2000, p.382
Pois bem, feito este paralelo com o Mário Ferreira – para mostrar o que o Professor entendia por “exposição sistemática” -, é preciso ainda entender o porquê desta rejeição. Diz o Professor Olavo: ““Amigos e inimigos cobram-me a exposição sistemática de uma filosofia da qual espalhei uma parte em fragmentos orais e escritos e a outra parte conservo implícita, em formato de entrelinhas, confiante na capacidade hermenêutica ou divinatória de quem tenha alguma… Desde o início da minha aventura de estudioso, estou persuadido de que a sabedoria – ideal a um tempo móvel e derradeiro da filosofia – não consiste em verdades gerais cristalizadas em fórmulas doutrinais repetíveis, mas na apreensão do sentido universal das situações particulares, únicas e concretas vividas pelos seres humanos reais”. [29] COF, aula 91
Percebam que o próprio Professor tinha a confiança – e manifestava isso conscientemente – de que alguém, algum dia, iria conseguir dar maior unidade e claridade a esses fragmentos dos seus escritos e de suas aulas. Também queremos destacar a questão da “fórmula doutrinal repetível”, que, como explicitamos, é a causa central da recusa do Professor por uma sistematização filosófica. Continua o Professor: “O senso estético consiste na capacidade de apreender a unidade da beleza por trás dessas formas, mesmo sem poder condensá-la em princípios gerais”. [30] Ibidem É de salientar aqui que a comparação que fizemos, mais acima, é, mais uma vez, corroborada pela própria citação do Professor Olavo. Pela experiência de um indivíduo consciente da presença do ser, a verdade do ser é apreendida. Assim, o universal é apreendido no particular.
Decorrente disso: “Não há sistema metafísico que, bem examinado, não revele alguma contradição interna ou um descompasso com a experiência… Como não pode haver linguagem totalmente literal e sem ambigüidades, sempre resta, na leitura das grandes obras de filosofia, a possibilidade de interpretar simbolicamente algo que no sentido literal está manifestamente errado, e assim fazendo remontar à percepção originária de uma verdade obscura que o filósofo falhou na tentativa de convertê-la em conclusão doutrinal explícita”. [31] Op.cit
A visão do Professor Olavo era que uma doutrina metafísica, um sistema de regras fechadas, pelo impulso originário da meditação filosófica – que é uma descoberta e uma redescoberta -, levaria a ambiguidades em sua verbalização linguística. A Filosofia não pode ser uma doutrina explícita, porque ela é um exame, e reexame, da experiência, da unidade do real. Como experiência consciente do real, ela não pode se fechar a este mesmo real. Há sempre um exame, e reexame, da presença – experimentada pela consciência.
Por isso: “… nenhum filósofo criou suas doutrinas só para que as conhecêssemos, e sim para que através delas buscássemos a verdade; verdade que elas, na melhor das hipóteses, só conseguem apreender parcialmente ou, na maior parte dos casos, insinuar simbolicamente…Daí minha impaciência com aqueles problemas filosóficos genéricos que os professores de ginásio e os autores de manuais parecem considerar as expressões mais puras e elevadas da investigação filosófica: materialismo e idealismo, determinismo e livre arbítrio, os fundamentos da moral etc.”. [32] Op.cit
Esses “problemas genéricos” são aquilo que falávamos dos problemas escolares. O Filósofo escolar é aquele que vive no mundo do discurso, e não na totalidade do ser. O Filósofo escolar é aquele que falsifica o testemunho da verdade do ser, pois a sua consciência não medita esta verdade à perfeição do ser – que sempre é. Assim, a doutrina retira a presença cognoscitiva do homem da verdade do ser, colocando-o na presença do dogma – que toma assim o lugar da perfeição do real.
E diz o Professor Olavo que: “Essas perguntas genéricas alimentam, evidentemente, discussões sem fim e podem preencher muitas aulas e cursos inteiros de filosofia… Essa fórmula, ao contrário, foi elaborada pelos filósofos a partir de experiências que suscitaram a pergunta inicial. E a pergunta inicial que aparece da experiência nunca vem com a fórmula de conceitos formais claros e definitivos…Uma filosofia de verdade não vai partir de apenas de doutrinas e conceitos que estão prontos, mas vai partir da realidade”. [33] Op.cit
O Filósofo é aquele que parte de uma meditação consciente, de uma percepção originária, na tentativa de uma contemplação cognitiva total da presença do ser – embora ele saiba que pode apenas testemunhar algo desta presença. Nessa busca, o Filósofo não encontra essa experiência cognitiva pronta, já elaborada, demonstrada. É preciso, pois, uma atividade cognitiva inicial que puxe à verdade do ser, a presença, e a evidencie – a torne presente à consciência.
Assim: “Os conhecimentos humanos e as experiências interiores dos filósofos – dos buscadores da verdade – elas se condensam e se cristalizam em obras, e essas obras por sua vez formam disciplinas escolares. A aquisição dessas disciplinas escolares tem os seus problemas e dificuldades próprios. Fica tão difícil você adquirir o domínio dessas disciplinas que você nunca vai chegar aos objetos delas. Vamos supor que você vá estudar filosofia política, teoria do estado. Você pode conhecer todas as doutrinas sobre a teoria do estado sem nunca estudar estado nenhum”. [34] Op.cit
Tenho na minha frente um copo; posso estudar o conceito do copo, posso ler uma obra sobre o copo, mas jamais terei o entendimento do que ele é; o copo é uma presença presente na perfeição do ser. Através de uma atividade cognitiva, de uma percepção cognitiva, à verdade do ser, verdade de sua presença, tento realizar a sua evidência à minha consciência. Como dissemos, a verdade do ser, a verdade de sua presença, é a unidade do real na própria perfeição do real. Caso a minha consciência, a minha cognição, feche-se a totalidade do ser, fecho-me a verdade do copo – sua presença. Conheço-o como conceito, mas não o conheço à verdade de seu ser – de sua presença.
Continua o Professor:”… nós filosofamos não a partir de uma tradição filosófica, mas a partir dos objetos que se apresentam a nós usando a tradição como instrumento auxiliar, é claro que os problemas que nós vamos investigar não vão nos chegar numa ordem didática ou sistemática… Eric Voegelin estava estudando Direito com Hans Kelsen e de repente aparecem os problemas das revoluções comunistas e fascistas… Isto foi o assunto dele. “Por que isto acontece?” O problema não chegou para ele como item de um programa escolar. “Agora capítulo tal, vamos estudar as ideologias de massa modernas”. Não foi assim. Nem havia uma disciplina que estudasse sistematicamente os movimentos de massa. Apareceu como experiência real e como um enigma real da vida”. [35] Op.cit
Já que o Filósofo, para entender um problema, parte de uma percepção cognitiva inicial, ele não encontra a sua resposta em uma disciplina, ou sistema, mas sim na própria atividade consciente. É então que podemos abordar o problema da relação dessa atividade, que sempre é individual, com uma disciplina socialmente, ou cientificamente, pronta. Para o Professor, por ser a atividade cognitiva aquela que evidencia a verdade da presença à consciência, ela não existe ainda como disciplina. Entramos aqui no problema da linguagem verbalizada da percepção cognitiva.
O Professor Olavo nos diz que: “Ou seja, não se trata apenas de você afirmar como proposição lógica, mas trata-se de você reconhecer isto na experiência efetiva que você tem do conhecimento. Portanto, a filosofia do Louis Lavelle é um constante exercício psicológico de retorno sobre si mesmo e de reconhecimento das condições reais em que se dá a experiência”. [36] COF, aula 186 Como dissemos, o Filósofo não tem a totalidade do ser, mas sim um relato da verdade do ser à consciência. Isso se dá porque a verdade do ser é a unidade do real – ela é na perfeição do ser, e não na atividade cognitiva. A minha percepção cognitiva descobre à verdade do ser, e é na minha consciência que redescubro essa verdade percebida. Reconheço porque conheço a verdade do ser na perfeição do real , e dou testemunho de sua presença à consciência.
Assim: “O mundo da teoria é um mundo considerado como um conjunto, como uma totalidade; mas nós nunca vivemos na totalidade do mundo, nós vivemos só num pedacinho e num momento. A teoria unifica os conhecimentos na alma do indivíduo, e isto permite que ele continue existindo, que ele tenha o domínio de si. Para passar para a prática você tem que introduzir um monte de incoerências, e a prática vai ser geradora de novos problemas, novas questões, e daí você vai ter que teorizar de novo porque se não você se desarticula. A imersão total do indivíduo na prática acaba por desorientá-lo, portanto ele tem que voltar para a teoria, não para reorientar a prática, mas para reorientar a ele mesmo”. [37] Carvalho, Ensaio sobre os Fundamentos da Moral, 1995, p.53-54
Lembremos do exemplo do copo; tenho uma percepção cognitiva do copo, da verdade do copo, mas não tenho a contemplação total da verdade de seu ser – que é na perfeição do ser. O copo é verdadeiro na perfeição do ser. É na presença do ser que a minha atividade cognitiva percebe o copo. Assim, tento perceber a unidade total do copo à minha atividade cognitiva. A verdade do copo não pode estar na minha atividade cognitiva, pois ela me dá apenas um relato, uma evidência, de sua verdade [38] Ou, como diria o Professor: um pedacinho de sua verdade – que está na própria totalidade do ser. Portanto, o homem, porque busca relatar, reconhecer, a unidade do copo à consciência, sempre tem de imergir na percepção da presença do ser – na qual o copo tem sua unidade, sua realidade.
A consequência natural disso é que: “O maior filósofo é um sujeito que descobriu uma coisa que os outros não sabiam direito ou que está dizendo algo que os outros não conseguiram dizer, então ele é o primeirão. Como é o primeiro, não tem muita prática de dizer aquilo, então pode dizê-lo de uma maneira inadequada. Quando você lê Aristóteles, qualquer manual de lógica de Aristóteles ou qualquer estudo sobre a filosofia de Aristóteles explicam Aristóteles melhor que ele próprio. Mas é lógico que tem de ser assim. Aristóteles desbravou um terreno, abriu um terreno, depois nós examinamos aquilo milhares de vezes, então naturalmente sabemos explicar aquilo de uma maneira mais adequada a partir da descoberta pioneira dele. Então a contradição lógica em si não tem muita importância, o que vocês têm de desenvolver é este senso do que ele chama da experiência incontornável: é quando você percebe que certa experiência é de certo jeito e não tem como não ser desse jeito”. [39] Op.cit
Ora, percebo à verdade do ser – que é na totalidade do ser. A minha percepção cognitiva é da presença do ser – a qual tento evidenciar à minha consciência a unidade total, a verdade total, do ser percebido. É um exame da experiência, da percepção, do ser à consciência. Assim, a sua descoberta é redescoberta na própria consciência, e não na linguagem verbalizada. A linguagem é uma tentativa de expressar essa redescoberta da verdade do ser – e por isso há discrepância em sua comunicação verbal.
“… recuando desde a forma explícita do texto, desde as afirmações explícitas do texto, até a inspiração humana que gerou aquilo, isto é, os acontecimentos reais, a experiência real a que o filósofo esteve submetido e que teve sobre ele o impacto que desencadeia essa seqüência de pensamentos, você às vezes acaba entendendo que a filosofia do cidadão tem um sentido um pouco diverso daquilo que está aparentemente nos textos. Porque o texto não pode, por si, dar o peso humano que a coisa tem e, portanto, não lhe pode dar a noção do grau de credibilidade que aquilo tinha para o próprio filósofo”. [40] COF, aula 151
Para o Professor, não é possível ser Filósofo, ou estudar a Filosofia de um Filósofo, sem refazer a percepção cognitiva que o Filósofo teve da presença do ser. O texto, o escrito, é apenas uma tentativa de comunicação do que o Filósofo testemunhou da verdade do ser, da presença, à consciência. Esse testemunho só se dá na pessoa individual – na consciência que procura a unificação total do ser percebido. A unidade da Filosofia só se dá no Filósofo mesmo. É aí que é preciso retomar, refazer, a sua percepção cognitiva da totalidade do ser. “Então, é isso que o Eric Voegelin dizia: não estudem filosofia, estudem a realidade. A estrutura interna de uma disciplina não reflete necessariamente o campo, a zona de realidade sobre a qual ela está falando: existe toda uma tensão dialética entre a estrutura, os métodos, o vocabulário de uma ciência e o seu objeto”. [41] Ibidem
É aqui que podemos verificar a legitimidade de nosso trabalho. A Filosofia se dá na verdade do ser – a qual o Filósofo tentou contemplar. Ela não é o estudo do texto, mas sim da perfeição do real. Como a verdade do ser só se dá na unidade do real, a disciplina existente, que o Filósofo usa, é insuficiente para a comunicar. Certas verdades do ser, elucidadas na consciência do Filósofo, não podem ser redescobertas no texto, mas sim na percepção cognitiva da presença do ser.
Continua o Professor: “… na história de qualquer ciência, a diferença entre os pioneiros e inventores, os criadores da ciência e os meros burocratas, reside justamente nisso aí: os burocratas estão interessados na disciplina enquanto tal e, então, repassam-na como a receberam. Podem até aprimorar um pouquinho aqui e ali, mas não voltam sua atenção novamente para a realidade que aquela disciplina estuda, realidade da qual zonas ou faixas muito amplas podem ter escapado ao horizonte de atenção da ciência. Por outro lado, o que os grandes descobridores em qualquer área de pesquisa filosófica ou científica fazem é reconquistar essas áreas de realidade que tinham ficado fora da disciplina tal como está constituída”. [42] Op.cit
Essa “reconquista” é feita através da “experiência interior”: “… no julgamento das criações da inteligência, se pode levar em conta não somente a elaboração mais perfeita ou imperfeita, mas também a amplitude, a coerência e a qualidade da experiência interior que lhe serve de base. Esta experiência é o que constitui o “mundo” do filósofo… que, considerado em si mesmo e independentemente do esforço reflexivo posterior, que lhe dá corpo e o torna participável por outros seres humanos”. [43] Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.40
Esse “mundo do filósofo” é a obra filosófica, é aquilo que foi verbalizado da percepção cognitiva originária – da busca pela coerência, pela verdade do ser percebido. É por isso que: “Se existe um sentido na distinção entre “conteúdo” e “forma”, é quando toma como sinônimo de conteúdo a forma da experiência espiritual como tal, anterior e independente da forma concreta da “obra”, por trás da qual pode ser apreendida em filigrana ( por quem, é claro, possua experiência similar ou melhor ). Note-se que em todos esses casos o julgamento espiritual transcende e abole as diferenças entre as disciplinas formais ( física, música, poesia etc .) que serviram de molde à sua encarnação na obra historicamente registrada”. [44] Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.41
O Professor ainda ressalta que: “… não existe vínculo de implicação recíproca entre a natureza da experiência espiritual e a modalidade, ou gênero, de sua expressão concreta nas formas das disciplinas culturais reconhecidas. A história interior, a história espiritual da humanidade, não se identifica nem com a história das formas ou disciplinas, nem muito menos com a história das ideias”. [45] Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.42
Para Olavo, não há faculdade de Filosofia, qualquer que ela seja, capaz de fornecer os conhecimentos necessários para a compreensão de um Filósofo. Segundo ele: “Para fazer tudo isso, você vai encontrar o seguinte problema desde o ponto de vista da história interna das ideias do filósofo, da interpretação interna: um único filósofo lida com elementos que são tirados de várias disciplinas – ou disciplinas já existentes ou disciplinas que ele mesmo criou – como Aristóteles que criou várias“. [46] COF, aula 75 Isso significa que a evidência da verdade do ser à consciência do Filósofo, é por este comunicada na obra de maneira simbólica. Era isso que o Professor Olavo chamava de registro da cultura – ao qual tem de receber uma extrusão, ou, na linguagem do Voegelin, uma descompactação.
“Então, [a Filosofia ] é necessariamente um processo contínuo. Assim como na vida individual, na vida concreta de cada indivíduo, as nossas concepções, as nossas ideias, vão se modificando de acordo com a experiência, e não tem como você fechar: ‘isso aqui é terminal, acabou!’ Você não sabe o que vai acontecer no dia seguinte. A filosofia é um reajuste entre as suas concepções intelectuais e a sua experiência e esse reajuste tem que ser um esforço permanente. Ela não visa a chegar a conclusões definitivas sobre coisa nenhuma, mas apenas alcançar o máximo de esclarecimento possível dentro da situação… Esse reajuste implica também o progresso no processo de descompactação dos símbolos. Ou seja: toda a filosofia anterior é compacta em relação à filosofia seguinte, que tem que ser mais diferenciada. Portanto ― e isto é fundamental ― aquilo que parecia afirmação literal para o filósofo no momento em que ele a emitiu, passa a ser simbólica para as gerações seguintes, porque tem que ser descompactada”. [47] COF, aula 151
A obra filosófica é, para as gerações seguintes, uma experiência simbólica, condensada. Essa nova geração não pode ler o texto como se fosse a Filosofia do Filósofo, mas sim, partindo do texto, praticar uma atividade cognitiva de esclarecimento ante a situação presente – reajustando a comunicação verbal da obra com a nova experiência cognitiva. “E você tem que saber que aquilo que você está dizendo naquele momento se tornará simbólico para as gerações seguintes. Elas vão ter que descompactar mais: esse processo de diferenciação, e ao mesmo tempo de integração, ele vai prosseguir indefinidamente… A própria avaliação de uma filosofia depende do estado de confusão que o filósofo herdou e do estado de esclarecimento que ele legou. Portanto, sem compreender a confusão originária [da experiência humana ], você simplesmente não entende a filosofia e muito menos pode julgá-la”. [48] Ibidem
Para o Professor Olavo: “… chamamos de grandes filósofos, não aqueles que se esmeraram no esforço vão de chegar à prova lógica mais detalhada, e, sim aqueles que conseguiram abranger, num olhar unificante, o horizonte de problemas mais amplo e complexo, criando assim um senso de orientação que permanece útil para muitas gerações subseqüentes… O critério aí adotado implica que nada se entende de uma filosofia sem uma visão efetiva das experiências de fundo às quais ela responde com um vigoroso esforço de expressão, ordenação, unificação e clarificação”. [49] Op.cit O Filósofo parte de uma percepção cognitiva originária da totalidade do ser, e tenta redescobrir à consciência um senso coerente, um senso unificado, do que percebeu desta totalidade. Assim, a coerência da Filosofia deve ser buscada para além do texto – na própria perfeição do real.
É então que o Professor nos diz: “Então o sujeito está simplesmente narrando, não está dizendo que as coisas acontecem assim e tem de acontecer desse modo em todos os casos; ele está dizendo apenas que aconteceu assim. Porém, se você penetrar intelectualmente no sentido daquela experiência, perceberá imediatamente quais são as condições em que aquela experiência terá de se repetir tal e qual, ou seja, é você que percebe, e não o autor que você está lendo. Na hora em que você lê, já capta o sentido daquela situação mais filosoficamente do que o autor a expressou. Mesmo que a expressão dele não seja logicamente suficiente, é já numa clave de universalidade lógica na qual você captará aquilo”. [50] COF, aula 186 Embora o testemunho do Filósofo seja individual – na consciência -, ele é universal, na medida em que é uma meditação à verdade do ser – que é na perfeição do ser. A unidade do real sempre é, e sempre pode receber uma nova atividade cognitiva.
Dessa universalidade, podemos então trazer o que o Professor chamava de “significado originário”: “… é absolutamente necessário que a leitura de livros de filosofia seja feita por um método no qual se harmonizem de alguma maneira vários aspectos contraditórios, difíceis mesmo de combinar uns com os outros. Por exemplo: há toda uma série de círculos concêntricos de significado que tem algo a ver com a mentalidade da época e com alusões subentendidas no texto a autores contemporâneos, com os quais o autor está discutindo implicitamente… o significado originário – aquilo que fez com que as ideias de um autor tivessem sempre algo a ver com o processo de ideias da qual ele partiu. Tudo isso tem de ser unificado no horizonte de consciência do autor, isto é, naquilo que o indivíduo estava realmente sabendo e enxergando”. [51] COF, aula 131
Sobre a mentalidade da época, e as discussões implícitas no texto, deixaremos para tratar um pouco mais à frente. Por hora, o que nos interessa é ver que o Filósofo parte sempre de um senso coerente na consciência. Esse senso o orienta, e o ajusta, na experiência da presença do ser, ou seja: as ideias que o Filósofo vai adquirindo na consciência, ao longo dessa experiência, vai sendo coerida segundo uma atividade cognitiva. Sobre isso: “O filósofo sempre investiga as coisas a partir de seus próprios poderes cognitivos, sem poder contar com nenhuma autoridade externa. O filósofo sempre procura uma orientação pessoal no universo do conhecimento disponível – o horizonte dentro do qual o filósofo busca essa orientação é delimitado pelo conhecimento que a ele está disponível, possível… Esse senso de orientação é móvel. À medida que ele aprende novas coisas, que chegam novas informações, ele tenta fazer com que o senso previamente obtido adapte-se a esses novos conhecimentos – o que muitas vezes força alguns filósofos a mudar de ideia ao longo da vida”. [52] COF, aula 132
É por isso que, para estudar a Filosofia de um Filósofo, nós “tentamos nos aprofundar nos detalhes do texto, ou seja, partindo de um interesse geral que temos por questões de filosofia, cultura, etc, e vamos, por assim dizer, afunilando, como numa espiral que se fecha para dentro dos detalhes mais sutis do texto; em seguida, relacionamos aquilo com questões mais amplas – que chegam até aquelas questões que dizem respeito a nossa vida no mundo presente. Nós vamos, então, até o texto, e retornamos à nossa própria posição… Este modo de leitura parece-me inerente à própria natureza da atividade filosófica”. [53] Ibidem Esse é o motivo do Professor dizer que a Filosofia, enquanto investiga, examina, a presença do ser, não pode dar prova do que descobre, porque a sua descoberta é reexaminada na consciência, ou seja: o Filósofo é aquele que tenta perceber toda a unidade do ser na sua atividade cognitiva.
“A possibilidade da discussão racional só aparece depois que o grande empreendimento de organização unificante da experiência chegou ao seu termo… nenhum filósofo deu jamais uma prova cabal de tudo o que ele disse. Por quê? Porque ele estava descobrindo coisas que não sabiam antes. É impossível, ao mesmo tempo, descobrir-se uma coisa e dar a sua prova mais perfeita possível. A prova pode demorar muitos séculos depois, e essa é a discussão racional”. [54] COF, aula 151 Portanto, o Filósofo, em sua percepção cognitiva, está aberto à verdade do ser, a novos conhecimentos, novas descobertas – o que o impossibilita de dar por encerrado o assunto, de apresentar uma prova cabal.
“Nenhum filósofo jamais fecha o horizonte do material disponível. Cada filósofo, até o instante da sua morte, está aberto à entrada de novas informações. Os filósofos estão sempre abertos à possibilidade de que seja preciso começar tudo de novo, em outras bases. Isso significa que a filosofia tem esse caráter experimental, “tentativo””. [55] COF, aula 132 Como afirmamos acima, o Professor Olavo desenvolve uma Ontologia do conhecimento. Isso quer dizer que o íntimo do ser, que é a nossa forma cognoscitiva de ser, é o debruçar-se sobre a verdade, sobre o conhecer a verdade. Ora, como dissemos também, é o Filósofo que supervisiona, examina, a verdade. Assim sendo, a Filosofia é a percepção cognitiva à verdade do ser – que é na perfeição do ser. A Filosofia se dá no testemunho da unidade do ser à atividade cognitiva, à consciência.
“Se há algo que você não pode chegar, pela argumentação racional, é a verdade nua e crua. A argumentação racional só te dá um suporte verbal para acreditar naquilo que você já acredita. As verdades descobertas, no instante em que você as descobre, você não tem nenhum argumento em favor delas. O modelo máximo de verdade que podemos ter é o testemunho direto”. [56] Curso A crise da inteligência segundo Roger Scruton, aula 04 Sendo assim: “O sujeito que descobre questões fundamentais, no primeiro momento, ele não tem argumento nenhum – que surgirão com o tempo. O testemunho é individual, intransferível… A testemunha individual, solitária, nos dá o único tipo de conhecimento irrefutável que existe, porque o conhecimento só se obtém pela experiência”. [57] Ibidem Que não se confunda aqui “experiência” com qualquer experiência do dia a dia. A “experiência” é senão a experiência consciente da presença do ser, que “obtém” algo da verdade do ser.
“… tenho comentado a ideia da importância excessiva que muitas escolas filosóficas dão a uma coisa chamada argumento ou prova… Antes de você provar, você precisa saber. Aquilo que você sabe não vem com a prova junto; a prova é uma segunda camada de pensamentos que você desenvolve em cima de algo que você descobriu. A prova é aquilo que se tornará aquele seu conhecimento socialmente compartilhável”. [58] COF, aula 274 Ora, essa descoberta é a descoberta da presença do ser, descrita à consciência.
A Filosofia, para o Olavo, não está na prova ou na obra, pois ela é a própria atividade cognitiva, a meditação consciente, da presença do ser. “Se é possível delinear a filosofia como unidade, esta unidade não pode ser buscada nos resultados alcançados, nas teorias plenamente desenvolvidas, mas ao contrário: no impulso inicial que colocou o filósofo no caminho da sua vocação. Quer dizer: é a unidade da vocação que determina a unidade da filosofia, e não uma impossível unidade das conclusões finais. O filósofo não se torna filósofo pelo que encontrou, mas pelo que estava buscando”. [59] COF, aula 322
Segundo ele: “A filosofia é uma atividade cognitiva desempenhada pelo indivíduo humano, para atender a sua aspiração, e a sua necessidade de coerência, sentido e propósito… Mas se eu estou dizendo que a filosofia é uma atividade de coordenação de conhecimentos , entendo que só posso coordenar os conhecimentos que eu possuo, ou seja, esta é uma atividade que é essencialmente desempenhada no interior do indivíduo”. [60] Carvalho, Ensaio sobre os Fundamentos da Moral, 1995, p.27-34
A Filosofia se dá no momento em que o Filósofo percebe a verdade do ser à atividade cognitiva. É um relato da presença do ser, da descoberta do ser, elucidada à consciência. “O ato da filosofia se perfaz no instante em que o filósofo apreendeu a verdade daquilo… A transmissão, sobretudo a transmissão escrita, não faz parte da filosofia… Existe uma atividade de conhecimento, o percurso que ela seguiu, e os resultados que ela oferece, isso é a filosofia”. [61] Curso Introdução ao método filosófico, aula 03 Assim, a Filosofia não está no escrito, mas sim “na consciência do filósofo – é ali que se realizou a obra filosófica, e não no escrito. A filosofia é uma atividade de reflexão, de intensificação e organização da consciência”. [62] COF, aula 290
A Filosofia não pode estar na obra, porque ela busca a sabedoria, que está senão naquele que busca testemunhar a verdade da perfeição do ser, ou seja: o Filósofo, a Alma individual. “… a filosofia, ao contrário da poesia, não está nunca totalmente na obra, e sim metade no filósofo mesmo: o portador do saber é o homem não o livro. O livro, o tratado, a aula, nunca é senão a condensação do saber nuns quantos princípios gerais e sua exemplificação numas quantas amostras; e o saber, o verdadeiro saber, se abriga naquele núcleo vivo de inteligência que permanece no fundo da alma do autor após encerrado o livro… Não nego totalmente, no entanto, a possibilidade de colocar em livro o essencial do que um homem sabe e vê. Apenas julgo que não se pode despejar inteiramente o conteúdo dessa visão pessoal em teses explícitas, porque elas são apenas o resíduo cristalizado de uma decantação interior que, longe de constituir a mera preparação para o seu advento, constitui antes o exercício mesmo da filosofia”. [63] Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.80 Portanto: “A comunicação, a forma concreta da obra escrita, é em filosofia o momento acidental e menor de uma atividade que consiste, fundamentalmente, em conhecer e não em transmitir”. [64] Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p. 78
Podemos ver assim que a ideia da Filosofia como percepção cognitiva, projeto investigativo, da presença do ser, está, desde o início, no horizonte de consciência do Professor Olavo. “Quando eu falo em filosofia aqui, estou falando num sentido aristotélico-platônico, no sentido definido naquilo que eu chamei o projeto socrático. Projeto porque não aparece como uma disciplina pronta nem como um conjunto organizado de saberes, mas como uma busca destinada a prosseguir por tempo indefinido. Sócrates jamais teve a ilusão de estar passando para os seus discípulos uma doutrina completa e, duas gerações depois, quando Aristóteles morre, entre outras coisas, ele nos lega um livro chamado “Perguntas” que tem ali alguns milhares de perguntas que ninguém jamais respondeu”. [65] COF, aula 152 Sobre esse “projeto socrático”, Olavo ainda vai dizer que: “A filosofia tal como a encontrei em Sócrates era o processo pelo qual uma consciência se apropriava de si mesma e da sua situação na existência buscando cada vez mais uma atitude responsável perante o conhecimento e a vida”. [66] COF, aula 274
Como a Filosofia é uma meditação cognitiva à verdade do ser – que se dá na totalidade do ser -, ela pode ser feita e refeita, ou aprimorada – tanto pelo Filósofo mesmo, como por aquele que retoma a percepção cognitiva da presença do ser. “… podemos dizer que existe um progresso em filosofia, porque há certos problemas esquemáticos que mais ou menos todo mundo coloca, e, com relação a estes, frequentemente um filósofo abrevia um bom pedaço da reflexão para os seus sucessores”. [67] Carvalho, Ensaio sobre os Fundamentos da Moral, 1995, p.27-34
O Filósofo lega a seus sucessores um problema, não uma conclusão; ele deixa algo do que foi elucidado da perfeição do ser à sua consciência; como o Filósofo procura chegar a unidade total do ser elucidado, que só tem a unidade na perfeição do real, ele deixa a sua Filosofia como um problema a ser experimentado. “O autor já faleceu e você não pode perguntar nada para ele, então é você que vai ter de completar o serviço. Em última análise, é você mesmo que vai ter de resolver o problema”. [68] Curso Introdução ao método filosófico, aula 06
Por isso, é preciso continuar a percepção cognitiva que o Filósofo teve da totalidade do ser: “Quando o Voegelin dizia “A nova ciência da política”, eu digo: “você tem razão, você começou uma nova ciência, mas essa nova ciência tem de ser prosseguida, tem de investigar isso até o fim”. Por isso… ele inaugura uma nova ciência, e o jeito de entendê-lo é prossegui-lo. A maneira certa de você se posicionar ante o Voegelin é se posicionar como ante Aristóteles; a maneira de você entender o que ele está fazendo é você continuar fazendo [ o que ele fez ]”. [69] Curso Introdução à Filosofia de Eric Voegelin, aula 02 Surge-nos então a pergunta “e como podemos fazer o que ele fez?”. “Você tem de partir do problema que ele legou, mais ou menos no método em que ele delimitou, complementar esse método conforme a necessidade do momento, e seguir adiante. Você tem de executar aquilo”. [70] Ibidem
Para o Professor Olavo, a Filosofia é como uma partitura musical, um tipo de melodia interior, que só pode ser entendida ao ser tocada: “… uma obra filosófica tem de ser inteiramente reconstruída; executada, a bem dizer como se executa uma composição musical com base na partitura, pois os escritos filosóficos não passam disto: partituras para executantes; e, ao executar, o artista elabora, retoca, altera e reconstrói – só então a obra aparece. Para servir de bases a esta reconstrução, valem tanto os trechos que o filósofo tenha deixado prontos e elaborados em seus últimos detalhes, quanto aqueles que tenham ficado no esboço, no plano ou na mera manifestação de intenções”. [71] Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p. 84
Para tanto: “O texto filosófico está para a filosofia como a partitura está para a música: depois de lido tem de ser tocado… no caso da música só se chega a uma compreensão efetiva se formos capazes de executá-la, o que se pode fazer até mentalmente apenas, aliás. De igual modo, em filosofia ocorre a reprodução de uma experiência intelectual, e se você não a refaz não pode abranger uma filosofia inteira… A leitura é somente o começo; a análise serve apenas para decompô-la, de maneira que você possa aclarar para si a sequência de operações necessária a reconstituição do pensamento do filósofo. É só nesse ponto que se inicia a filosofia propriamente dita”. [72] Carvalho, Edmund Husserl contra o psicologismo, 2020, p.62
Como já afirmamos, o Filósofo busca o senso de coerência, o senso de orientação, de ajuste, na consciência, de todo o conhecimento que descobre da presença do ser. Embora esse senso tente ter a coerência total da presença, ele tem de se corrigir, reajustar-se, à verdade do ser – que está na totalidade do ser, do real. “Um escrito filosófico tem um significado exato, mas não pode encerrá-lo nos seus próprios limites formais, porque é quase sempre a expressão de conclusões provisórias obtidas no curso de uma investigação que, em princípio, deve prosseguir até o último dia da vida do autor. Um texto filosófico é sempre uma obra inacabada, aberta”. [73] Apostila “Dois métodos”
O Professor Olavo salienta que: “… com Platão, há um esboço duma sistematização, duma organização, mas não se pode esquecer que ela sempre culmina nos mitos, ou seja, milhões de questões ficam em aberto. Aristóteles formaliza muito mais esse edifício, mas na maior parte das questões ele afirma não ser possível ter uma certeza definitiva, apenas uma certeza provável, e mesmo no caso desta última, em seu último livro “problemas ou questões”, ele coloca “milhares” de questões das quais a maior parte não foi resolvida”. [74] COF, aula 242
O estudante de Filosofia tem de experimentar o problema reajustando, aperfeiçoando, o que foi testemunhado pelo Filósofo. Como este testemunho só se dá na consciência mesma do Filósofo, o aluno deve buscar, inclusive, o que não está dito na obra, mas sim na perfeição do ser. “A educação verdadeira deve impelir os alunos a que eles cheguem a compreender o pensamento do mestre às vezes melhor do que ele mesmo tinha compreendido, para que possa aperfeiçoá-lo, completá-lo de algum modo. Tudo o que o homem faz é incompleto. Os homens morrem e, por isto, em suas obras fica faltando um pedaço, ou há contradições não resolvidas, etc. Então, é preciso que a geração seguinte prossiga o trabalho, resolva as contradições, ou mesmo, se for o caso, reforme tudo. Ora, para prosseguir ou reformar o trabalho de alguém, é preciso compreendê-lo a fundo, e compreender para além dele, se possível”. [75] Carvalho, Pensamento e atualidade de Aristóteles, aula 02 – parte I
No COF, o Professor nos dá um exemplo disso: “… Julían Marías, tendo absorvido profundamente e ao longo de décadas o pensamento do Ortega e também do Zubiri, sabe pela primeira vez o que pode acrescentar lá. Julían Marías aparece com a idéia que ele chama de a estrutura empírica da vida humana, elemento essencial para a filosofia do Ortega que o próprio Ortega nem de longe percebeu. Ele colocou algo ali que não estava, mas só conseguiu fazer isso porque absorveu profundamente a filosofia do Ortega”. [76] COF, aula 82
Olavo continua dizendo que: “Do mesmo modo, Aristóteles substitui a idéia platônica da percepção direta das idéias eternas pela idéia da abstração… Ele inaugura uma linha que depois é aprofundada durante toda a Idade Média por Santo Alberto, Santo Tomás, prosseguindo até a Neo-escolástica. Aristóteles começa uma coisa que rendeu por vinte séculos, e pôde fazer isto porque tinha absorvido o pensamento platônico até que aquilo se integrasse nas suas células, por assim dizer… Quando Aristóteles usa a expressão “nós, os platônicos”, no mesmo instante ele anuncia ensinamentos que não estavam na escola platônica, e manifesta exatamente isto: “me impregnei tão profundamente do platonismo que posso lhe acrescentar alguma coisa e inclusive corrigir algum pedaço”. Se você não teve essa absorção profunda, então não teve nada, absolutamente nada”. [77] Ibidem
Isso quer dizer que a função de um discípulo é complementar, aprimorar, corrigir, aprofundar, o que foi deixado pelo Filósofo – em sua tentativa de evidenciar a presença do ser à atividade cognitiva. “Quando um filósofo é muito lido, muito discutido por pessoas inteligentes e discípulos hábeis, em vida, ele tem ocasião de se explicar sobre pontos obscuros de seu pensamento, como aconteceu com Platão. Já nas primeiras obras de Aristóteles vemos certas objeções que ele tinha à famosa teoria das ideias de Platão. E no último livro de Platão… já existe um princípio de aprofundamento e reformulação da teoria das ideias, que Platão faz [o livro ] levando implicitamente em conta as objeções de Aristóteles”. [78] Carvalho, Aristóteles para principiantes,1994, p.9-10
O que o discípulo deve complementar é a própria atividade cognitiva da unidade do real: “Na Grécia, a filosofia teve uma certa unidade no período que vai de Sócrates até Aristóteles. Ali pode-se dizer que houve o desenvolvimento de um potencial que já estava dado na proposta socrática inicial. Sócrates tinha uma ideia a respeito daquilo que ele devia fazer e o fez até certo ponto. Platão aprofundou e Aristóteles deu um formato mais acabado. O processo grego que vai de Sócrates a Aristóteles foi como o crescimento de uma semente… percebe-se que ele [Aristóteles] ainda está trabalhando dentro do espírito socrático, que é antes o de desenvolver consciência cognitiva do que o de entregar uma doutrina pronta”. [79] COF, aula 242
Portanto: “podemos entender que o pensamento platônico recebido e trabalhado por um discípulo particularmente brilhante pôde se reformar e ser melhorado em vida do próprio mestre. É no livro das “leis” que vemos a potência do platonismo como filosofia capaz de evoluir e ir-se completando. Ora, esta potência surge justamente porque Platão mais jovem tinha encontrado um discípulo capaz de discutir suas ideias e apontar as partes faltantes e eventualmente suas contradições, de modo a estimular a continuação da investigação. Isto nunca aconteceu com Aristóteles. Podemos dizer que suas ideias não foram discutidas, pelo menos com profundidade, nem mesmo dentro do Liceu”. [80] Carvalho, Aristóteles para principiantes,1994, p.10-11 Essa afirmação do Professor tem tamanha importância quando verificamos que, assim como ocorreu com Aristóteles, o Mário Ferreira dos Santos, o Vicente Ferreira da Silva, o Farias Brito, o Miguel Reale, etc, nunca tiveram – nem em vida, nem em morte – discípulos hábeis a discutir, ou aprimorar, as suas Filosofias.
Pois bem, acredito que esse capítulo foi o suficiente para explicitar como o Professor Olavo entendia a Filosofia e a técnica filosófica – assim como para justificar a abordagem do nosso trabalho. Como pode ser visto, ao longo de todo este capítulo, não se pode estudar um Filósofo sem aprimorar, complementar, refazer, o exame cognitivo que ele fez da perfeição do ser. Passemos agora a uma análise do horizonte de consciência.
Capítulo II – Linguagem x Horizonte de consciência
References
↑1 | Disponível em:https://jornalcidadaniapopular.com.br/ao-mestre/ |
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↑2 | COF, aula 01 |
↑3 | E isso ainda ficará provado ao longo deste artigo |
↑4 | forma entendida aqui como princípio intrínseco |
↑5 | Carvalho, Ser e Conhecer, 2000, p.10 |
↑6 | Ferreira, 1957, p.12 |
↑7 | Ferreira, 1957, p.13-23 |
↑8 | Ferreira, 1958, p.35-36 |
↑9 | Que tem a capacidade ou o poder de conhecer, ver: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/cognoscitivo |
↑10 | Influência essa que, como dissemos, abarca tanto o horizonte de consciência do Professor, como aquilo que o escapa |
↑11 | Entendido aqui como representante do neotomismo |
↑12 | Ponto este que será justificado e demonstrado – deixando sempre aberta a possibilidade para colegas, e estudiosos, revisarem, acrescentarem, ou confrontarem, tal averiguação. |
↑13 | COF, aula 82 |
↑14 | COF, aula 89 |
↑15 | Ferreira, 2018, p.118 |
↑16, ↑19, ↑21, ↑22, ↑24, ↑25, ↑26, ↑31, ↑32, ↑33, ↑34, ↑35, ↑39, ↑42, ↑49 | Op.cit |
↑17 | Ferreira, 2018, p.268 |
↑18 | Aos quais trabalharemos mais à frente. |
↑20 | Ferreira, 2018, p.122 |
↑23 | Ferreira, 2018, p.117 |
↑27 | Ferreira, 2018, p.267 |
↑28 | Carvalho, Ser e Conhecer 2000, p.382 |
↑29 | COF, aula 91 |
↑30, ↑41, ↑48, ↑53, ↑57, ↑70, ↑77 | Ibidem |
↑36, ↑50 | COF, aula 186 |
↑37 | Carvalho, Ensaio sobre os Fundamentos da Moral, 1995, p.53-54 |
↑38 | Ou, como diria o Professor: um pedacinho de sua verdade |
↑40, ↑47, ↑54 | COF, aula 151 |
↑43 | Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.40 |
↑44 | Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.41 |
↑45 | Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.42 |
↑46 | COF, aula 75 |
↑51 | COF, aula 131 |
↑52 | COF, aula 132 |
↑55 | COF, aula 132 |
↑56 | Curso A crise da inteligência segundo Roger Scruton, aula 04 |
↑58, ↑66 | COF, aula 274 |
↑59 | COF, aula 322 |
↑60, ↑67 | Carvalho, Ensaio sobre os Fundamentos da Moral, 1995, p.27-34 |
↑61 | Curso Introdução ao método filosófico, aula 03 |
↑62 | COF, aula 290 |
↑63 | Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p.80 |
↑64 | Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p. 78 |
↑65 | COF, aula 152 |
↑68 | Curso Introdução ao método filosófico, aula 06 |
↑69 | Curso Introdução à Filosofia de Eric Voegelin, aula 02 |
↑71 | Carvalho, A dialética simbólica, 2015, p. 84 |
↑72 | Carvalho, Edmund Husserl contra o psicologismo, 2020, p.62 |
↑73 | Apostila “Dois métodos” |
↑74, ↑79 | COF, aula 242 |
↑75 | Carvalho, Pensamento e atualidade de Aristóteles, aula 02 – parte I |
↑76 | COF, aula 82 |
↑78 | Carvalho, Aristóteles para principiantes,1994, p.9-10 |
↑80 | Carvalho, Aristóteles para principiantes,1994, p.10-11 |