Revolução sexual: o sexo como arma política – Parte II

  • Jorge Teixeira
  • 18 ago 2022

Kate Millett (1934-2017) foi uma escritora, e educadora, feminista estadunidense. Millett foi uma das primeiras escritoras a, de fato, interligar as imoralidades sexuais ao aparato político – usando como atenuante, e sustentáculo, a possível opressão que a mulher vem a sofrer do patriarcado. Logo após a Revolução Francesa, começam a brotar uma série de teorias a respeito do que viria ser as opressões às quais rodeavam o homem moderno. Com o surgimento de escritos de autoria de Karl Marx e Friedrich Engels, corporiza-se a tese gnóstica moderna de transformar a Terra no Paraíso – escritos esses que lutam para desfazer qualquer tipo de opressão que alguns grupos sofriam da “tirania da maioria”. Karl Marx – por escrever que o proletário é a única classe que pode perceber a própria situação em que vive – pode, por ele mesmo, ser questionado pela falácia exemplum in contrarium.

O próprio criador desta tese, Karl Marx, não era um proletário e, por isso, pode ser considerado um exemplo contrário à regra – podendo, então, ser julgado pela falácia ad hominem. Friedrich Engels escreveu em seu livro: “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, lançado em 1884, que além da opressão da burguesia para com o proletário, há, também, uma opressão do homem para com a mulher ainda no seio familiar – e, para que a revolução socialista realmente seja positiva, é necessário que a mulher seja livre do homem.

Em que se baseia a família atual, a família burguesa? Na capital, no local privado. A família plenamente desenvolvida existe apenas para burguesia; mas encontra seu complemento na supressão forçada de todos os laços familiares para o proletário e na prostituição pública […] a grande indústria destrói todos os laços familiares e transforma as crianças em simples artigos de comércio, em simples instrumentos de trabalho […] Para o burguês, sua mulher não passa de um instrumento de produção“. [1] Engels; A origem da familia, da propriedade privada e do estado

Além de Engels escrever sobre opressão da mulher pela burguesia, ele vai além; escreve que a mulher também é oprimida pela família monogâmica: “A família monogâmica baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível e essa indiscutível paternidade é exigida porque os filhos, como herdeiros diretos, um dia devem tomar posse dos bens dos pais […] A derrubada dos direitos maternos foi a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem também tomou as rédeas da foi degradada, transformada em serva, em escravas da luxúria do homem e em simples instrumentos de reprodução“. [2] Ibidem

Engels confunde, várias vezes, o natural com o que ele mesmo decide chamar de escravidão. Segundo Friedrich, “a finalidade da família é procriar filhos”, sendo que, na verdade, “procriar filhos” é uma consequência natural da família, e não uma finalidade em si. O escritor também atrela a herança, que é algo natural, a uma imposição tirânica e, pior do que isto, atribui à procriação a incumbência para ter-se um herdeiro . Ou seja: Engels – ao afirmar que a procriação é a consequência da herança – vê a consequência como causa, e a causa como consequência.

Como o próprio Friedrich inverte a ordem da finalidade da família, é compreensível que o mesmo veja a mulher no seio familiar, como meio de procriação: “A mulher foi transformada em instrumento de reprodução”, mostrando, novamente, sua confusão quanto à naturalidade do ato sexual. Assim, Kate Millett inicia o seu livro, “Política Sexual”, escrevendo que uma das formas de acabar com patriarcado é naturalizando tudo aquilo ao qual a dita família tradicional considera moral.

Uma revolução sexual exigiria antes de mais nada, talvez, o fim das inibições e tabus sexuais, especialmente aqueles que mais ameaçam o casamento monogâmico tradicional: a homossexualidade, as relações sexuais pré-matrimoniais e na adolescência. Deste modo, o aspecto negativo no qual atividade sexual tem sido geralmente envolvida seria eliminado.[…] Em primeiro lugar, uma revolução sexual acabaria com a instituição patriarcal, abolindo tanto a ideologia da supremacia do macho, como a tradição de que a perpetua através do papel atribuído a cada um dos dois sexos“. [3] Kate Millett: Política Sexual; página 12

Kate, já na introdução do seu livro, dita o tom, e o instrumento, de seus objetivos. Engels escreveu que a mulher é oprimida pelo patriarcado, mas não disse a fórmula para que ela se torne livre das algemas do macho. Essa formula é, então, criada por Millett: usar o sexo como uma arma, e instrumento, político é a naturalização da imoralidade sexual. Kate – ao anunciar que a masculinidade, além de não pertencer, naturalmente, ao homem, a ele é inútil -,  mesmo se utilizando do termo “sexo”, já obtém, em suas ideias, uma pré-metalidade do que, com Judith Butler, viria a tornar-se o termo “gênero”. Seria também inútil a feminilidade à mulher: “[…] da mesma forma, seria conveniente examinar as características definidas como masculinas ou femininas […]”. [4] Ibidem

Millett vai além: afirma que a Revolução deve acontecer no subconsciente do homem e não nas instituições por ele criadas. Pois veja, no livro “10 livros que todo conservador deve ler” o autor, Benjamin Wiker, analisando a obra “A Política” de Aristóteles, parafraseia o filósofo – quando diz que a Nação é formada por famílias, às quais, por sua vez, são formadas por homens. Portanto: “Assim como as plantas precisam ser podadas, os vícios precisam ser removidos das famílias pois estes distorcem seu desenvolvimento. As almas desordenadas de um pai e de uma mãe podem levar a famílias desordenadas que levam a sociedades desordenadas”.

Ao entender esse trecho, entende-se o que Millett quis dizer ao afirmar que, primeiro deve-se subverter o homem para, a posteriori, subverter as instituições: “Deve ficar claramente assente que a arena da revolução sexual se situa muito mais na consciência do homem do que nas instituições por eles criadas”. Kate Millett, na página 13 do seu livro, reclama da derrota de uma possível tentativa de revolução sexual, mas não deixa exatamente claro do que ela se trata, e de onde tal derrota aconteceu. Ao afirmar que: “Nesta perspectiva, as falhas da primeira fase são compreensíveis e as paragens e falhas do seu progresso, que se notam na época seguinte, embora prejudiciais e deploráveis, não são mais o que pausas naturais num processo capaz de retornar o seu curso”, Millett faz alusão à Revolução Russa leninista – à qual, com a ajuda da bolchevique, Alexandra Kollontai, instaurou uma balbúrdia imoral no que diz respeito à tradição patriarcal.

No livro “A Revolução Sexual Americana”, o escritor Russo Pitirim Sorokin, denuncia a libertinagem sexual revolucionária russa ao escrever: “O atual aumento das relações extraconjugais ameaça substituir o próprio casamento monogâmico por alguma espécie de pseudo casamento poligâmico, poliândrico, anárquico ou comunal. Tal dissolução do casamento da família durante um longo período de tempo é improvável mas, temporariamente, pode acontecer aqui como tem acontecido na Rússia soviética sendo entretanto superada“. [5] Pitirin Sorokin, A revolução sexual americana, 1961, página 20

De pensamento aristotélico, Sorokin alerta que a desestruturação da família tradicional, ao longo dos anos, pode causar uma desestruturação em toda a sociedade. O livro de Jorge Scala “IPPF – A multinacional da morte”, traz uma carta que o Doutor Wetzel escreveu, a pedido de Himmler, para ser atendida na Rússia: “Se deve inculcar à população russa de todo o meio de propaganda, em particular pela imprensa, o rádio, o cinema, os panfletos, folhetos e conferências de que um grande número de filhos não representa senão uma carga pesada. Há que insistir nos gastos que os filhos ocasionam e nas boas coisas que se poderia ter feito com dinheiro que se gasta com eles. Ao mesmo tempo, deve-se estabelecer uma propaganda ampla e poderosa a favor dos produtos anticoncepcionais. Haverá que facilitar a criações de instituições especiais para o aborto e os médicos devem recomendar igualmente a esterilização voluntária“. [6] Jorge Scala: IPPF A multinacional da morte, página 21

Quando Millett fala em “paragens e falhas no seu progresso”, ela faz alusão a Stalin – ao qual havia decidido proibir o andamento da balbúrdia imoral na Rússia, chegando a proibir, até mesmo, a pornografia. Assim, Kate Millett – utilizando-se, como instrumento da revolução sexual, a escola liberal defendida por Mary Wollstonecraft e por Marquês de Sade, a opressão do patriarcado de Engels, o racionalismo agnóstico, o gnosticismo moderno, a luta de classes de Marx e o cientificismo – abraça os ideais iluministas da França.

Esse amálgama de ideais é claramente percebido na página 14 de seu livro, quando ela escreve: “E foi contra a sociedade patriarcal que a Revolução sexual se lançou. Sendo já de si difícil explicar semelhante mudança radical na consciência coletiva, torna-se igualmente difícil datá-la com precisão. Poder-se-ia remontar ao Renascimento e ver nele os efeitos da educação liberal administrada ao homem e à mulher sem distinção. Ou poder-se-ia refletir sobre a influência do Iluminismo: sobre o impacto subversivo do seu racionalismo agnóstico na religião patriarcal, sobre o seu caráter humanitário que aspirava a dignificar certos grupos desfavorecidos e sobre o esclarecimento da ciência a propósito das nações tradicionais da feminilidade e natureza“.

Já na página 15, a feminista vai confessar uma articulação usada para embutir, no subconsciente das pessoas, hábitos não antes naturalizados. Está articulação é simplesmente utilizar da literatura antes de utilizar – por meio de leis e decretos – da política: “[…] começam a surgir discussões públicas sobre o assunto e a literatura mostrava uma preocupação obsessiva com as emoções e as experiências que essa revolução poderia provocar […]”. Kate Millett, para poder implantar uma revolução, precisa, primeiro, destruir a família tradicional, pois veja:

I – Tradicional vem de tradição;
II – Tradição é tudo aquilo que se estabelece;
III – A família na qual se estabeleceu, desde os primórdios, foi o homem, a mulher e, naturalmente, sua prole;
IV – Toda família que não é tradicional é desestruturada, pois “desestruturado” é tudo aquilo ao qual não segue uma estrutura tradicional.

A proposta de Millett é gerar uma revolução; para isso, ela precisa atacar o que é contrário ao revolucionário: o tradicional. O casamento é uma forma muito antiga, e tradicionalista, de dar corpo e validação às famílias. Assim como Simone de Beauvoir e Betty Friedman, Kate vê a destruição do casamento como uma ferramenta da revolução – tanto que compara o casamento ao feudalismo, assim como Beauvoir o compara à escravidão, e Friedan compara-o à tortura passiva. “Para que uma mulher não tivesse qualquer dúvida sobre sua situação de escrava, a cerimônia nupcial, como as suas exortações a submissão e obediência, era perfeitamente clara nesse aspecto […] O direito secular era igualmente explícito e estipulava que quando a mulher e o homem se tornam “um só”, esse “um” era o homem“. [7] Millett, página 18

Na verdade, o casal torna-se “uma só”, uma só carne ou um só corpo. Só que, como o corpo é uma palavra que não varia ao gênero gramatical, tanto o homem quanto a mulher podem ser representados pela palavra “corpo”. Millett atribui ao número “um” – ao qual, literalmente, expressa um significado quantitativo – um outro significado – e, para ser mais exato, um significado sexual, antecedendo, assim, a Monique Wittig. Ela vê nas palavras conotações não só sexuais, mas também machistas. Mais do que isso, “one meet” para “one body” não tem flexão da palavra “one”, fazendo com que tal machismo exista apenas no pensamento de Kate – já que não pode ser encontrado nos próprios símbolos aos quais ela mesma condena.

Já no capítulo 4 de seu livro, especialmente na página 74, ela – além de perceber que o patriarcado e a monogamia são estilos de família mais avançados em relação à poligamia – atribui a este fator, até então positivo, uma causa negativa – transformando-o, em relação à mulher, num fator negativo: “Combinando a obra de Bachofen com a do antropólogo Louis Morgan, pioneiro nesse assunto, Engels pode construir uma história universal, que descreve a família, as condições de reprodução humana e a organização social à medida que a gens, a fratria e a tribo se transformavam em cidades e nações, bem como a evolução dos meios de produção à medida que os homens se tornavam fabricantes de utensílios, pastores agricultores, artesãos, comerciantes e finalmente operários e industriais. Engels desenvolve uma série de etapas na história social ou familiar, passando sucessivamente do matriarcado (direito maternal) para uma série de associações sexuais: promiscuidade, casamento por grupo, família consanguínea, família punaluana, para chegar ao patriarcado por intermédio da família sindiásmica e finalmente do casamento monogâmico.[…] Engels como Bachofen afirmaram que o patriarcado aparecerá ligado à passagem de uma vida sexual comunitária a uma adopção de certas formas de associação sexual, primeiramente a família sindiásmica e depois o casamento monogâmico, estas duas últimas formas assegurando ao marido a posse sexual exclusiva da mulher“. [8] Millett, página 74

Parece que Millett está destinada a, em todas as relações sociais, encontrar um fator que ela mesma considera machista. Isso se deve a necessidade de encontrar um atenuante para a revolução sexual. Ela também confessa, na página 163 de seu livro, que Engels mostrou o problema do patriarcado, e como, a partir de Lenin, ela havia encontrado a solução: “Há uma outra causa, ainda mais profunda: é que à parte o facto de declarar que a família como instituição obrigatória devia desaparecer, a teoria marxista não tinha conseguido fornecer uma base ideológica suficiente para uma revolução sexual e subestimava com uma ingenuidade notável força histórica e psicológica do sistema patriarcal. Engels tinha-se limitado a descrever a história e a economia da família patriarcal, descurando o exame crítico dos hábitos mentais que ela inculcava. Lenin admitiu que a revolução sexual, tal como os processos social e sexual em geral, não foi correctamente entendida; declarou também, várias vezes, que essas coisas não lhe pareciam suficientemente importantes para que delas se falasse“. [9] Millet, página 163

Dada a mesma mentalidade da fórmula de Lavoisier: “ Nada se cria, nada se perde. Tudo se transforma ”, Millett tem noção de que não é possível destruir a família tradicional sem ter outra em seu lugar; por isso mesmo, analisa que a Revolução Sexual, dada durante a Revolução Russa, não se concretizou – ora por causa de Stalin, ora causada principalmente porque as bases da imoralidade sexual não se tinham propagado o suficiente para causar uma base sólida: “Mesmo neste ponto, os Soviéticos falharam deploravelmente. Como diz friamente Trotsky, não se pode “abolir” a família, é preciso substituí-la”. E a substituição da família é a transformação do casal homem e mulher, para o que Ana Campagnolo chamou de “polisexo”. [10] Ana Campagnolo: Feminismo: perversão e subversão

Na última parte de seu livro, “ A reação ideológica”, Kate Millett escreve:

I – Marx dizia que o proletário deve matar seu burguês;
II – Engels disse que, antes da revolução de Marx, a mulher deve se ver livre do patriarcado;
III – A Revolução Russa mostrou ser a Revolução Sexual o meio para se alcançar o Socialismo;
IV – Deve-se, então, destruir a família tradicional e substituí-la por uma outra fluida;
V – E, por fim, um dos meios é a linguagem científica e a validação da libertinagem na psicologia.

Para que esta ciência fosse inatacável, devia existir uma relação, por muito duvidosa que fosse, com outras ciências de mais fácil validação: biologia, matemáticas, medicina. A fim de satisfazer as necessidades das sociedades conservadoras e de uma população demasiado hostil ou demasiado perplexa perante a ideia de submeter a vida social a transformações revolucionárias e até de modificar radicalmente unidades de base tais como a família, entrou em cena um cortejo de novos profetas para revestir a velha doutrina da segregação dos sexos de uma roupagem à moda: a linguagem científica. Aquele que, entre todos, exerceu a maior influência e foi, sem dúvida alguma, o facto contra-revolucionário individual mais poderoso da política sexual no domínio da ideologia, foi Sigmund Freud“. [11] Millett, página 175

 

5§ Monique Wittig, Judith Butler e a fluidez de gênero


A castidade é “uma superstição monacal e evangélica, o maior inimigo da temperança natural do que a sensualidade vulgar; atinge a raiz de toda a felicidade doméstica, e condena mais da metade da raça humana à miséria, na qual é monopolizada conforme a lei. Seria difícil conceber um sistema mais cuidadosamente hostil à felicidade humana do que o casamento“. [12] Percy Shelley, Libido Dominandi, página 111 Este trecho foi escrito por um romancista muito amigada das teorias anti-casamento, às quais, na época – mesmo gravitando em torno da Revolução Francesa -, ainda não tinham encontrado um viés político; na bem verdade, elas eram apenas teses filosóficas e culturais.

Os ideias materialistas, já denunciados por Chesterton em “Ortodoxia”, causaram também uma materialização não só das teorias filosóficas – não só da verdade -, mas do próprio homem, assim como de toda relação humana. Agora, tudo é socialmente e fisicamente construído: “Já que o universo é uma máquina, o homem também é uma máquina e a mulher uma máquina para a “voluptuosidade”, como disse Marquês de Sade, então o casamento é simplesmente a união de átomos em uma molécula, e o divórcio nada mais que sua separação e nova união em uma configuração mais agradável”. [13] Libido dominandi E. Michael Jones

Esse trecho de E. Michael, mostra o terreno que foi fertilmente construído para dar base às teorias absurdamente imorais, às quais seriam apresentadas no século XX. Os escritos de Kate Millett serviram, resumidamente, para dar o tom, e o instrumento, da Revolução Sexual, mas ela não os desenvolveu. Leis sexistas, distinção entre “sexo” e “gênero”, manipulação, decretos feministas criados pela ONU, lavagem cerebral e a tirania dos grupos que dizem oprimidos, serão o desenvolvimento deste plano diabólico de como o sexo é usado como arma política: “Se o céu recusar sua ajuda, conjure o inferno. Fiectere si nequeas superou, Acheronta movebo. Então, após ter identificado a paixão dominante do adepto através do estudo e da confissão, manipule essa paixão como um instrumento de controle: Estude os hábitos peculiares de cada um: pois o homem pode ser usado ilimitadamente por aquele que sabe se aproveitar de sua paixão dominante“. [14] Libido dominandi, E. Michael Jones, páginas 120-121

Uma das ferramentas desta revolução é apoderar-se de um termo que, quando usado, facilita muito a argumentação daqueles que o detém. O termo “gênero” ganhou relevância com a filósofa pós-estruturalista americana Judith Butler ( 1956- atual), em seu livro, cujo título já revela spoilers de sua filosofia: “Problemas de Gênero”. Butler anuncia uma divisão entre “sexo” e o que ela identifica como o desejo sexual individual de uma pessoa com as outras. Então, “gênero” seria essa fluidez sexual que uma pessoa pode ter ao longo da vida. Para Judith, “sexo” seria, então, somente, o fator biológico do ser humano, e esse sim pode ser dual – pode ser dividido entre macho e fêmea.

Mas, para a escritora, os termos homem e mulher, por serem construções sociais, são, portanto, fluídos – e a essa fluidez, ela deu o nome de “gênero”. “Embora a unidade não problematizada da noção de “mulheres” seja frequentemente invocada para construir uma solidariedade da identidade, uma divisão se introduz no sujeito feminista por meio da distinção entre sexo e gênero. Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem tão pouco tão aparentemente fixo quanto o sexo”. [15] Judith Butler, Problemas de gênero, página 24

Butler, logo no primeiro capítulo de seu livro, cita alguns escritores aos quais também concordam com esta teoria de que “ homem” e “mulher” são construções; porém, Butler foca no estudo exclusivo da mulher – já que esta é vítima da própria construção social que o patriarcado construiu para oprimi-la: “A gente não nasce mulher, torna-se mulher” (Simone de Beauvoir ). “ Estritamente falando, não se pode dizer que existam mulheres”. (Julia Kristeva ). “Mulher não tem sexo” ( Luce Irigaray ). “A manifestação da sexualidade estabeleceu esta noção de sexo” (Michel Foucault ). “A categoria do sexo é a categoria política que funda a sociedade heterossexual ” ( Monique Wittig ). Esta última é citada, por várias vezes, por Judith Butler. Monique Wittig ( 1935-2003) foi uma escritora francesa e particularmente interessada em estudar uma nova versão da mulher: a lésbica.

Para Wittig, o fato da mulher dormir com um homem, a torna, por isso, cúmplice do patriarcado. Então, para a feminista, toda mulher deve se relacionar somente com mulheres – transformando o ato sexual em uma pauta política. É dessa mentalidade que dar-se-á o termo: lesbianismo político. Monique associa o símbolo “mulher” a toda aquela que trabalha para o homem. Ou seja: se a mulher se vê livre do homem, ela já não é mais mulher, e, portanto, ela se torna a “lésbica” – um símbolo que representa toda aquela que pode de tudo fazer, menos se envolver com o homem.

Ademais, lésbica é o único conceito que conheço que está além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lésbica) não é uma mulher nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. O que constitui uma mulher é uma relação social específica com um homem, um relacionamento que chamamos de servidão, uma relação que implica obrigações pessoais e físicos e também econômicas (“residência fixa”, trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação da qual as lésbicas escapam quando se recusam envolver-se ou seguir sendo heterossexuais“. [16] Witting: O pensamento heterossexual e outros ensaios, página 43

Judith Butler faz, então, uma análise da heterossexualidade, pois esta determina a tão dualidade que Butler detesta: “A melancolia heterossexual é instituída e mantida culturalmente, como o preço das identidades de gênero estáveis relacionadas por desejos opostos”. [17] Butler: Probemas de gênero Para a escritora, a sociedade heteronormativa é opressora porque ela, naturalmente, e por definição, condensa as normas socialmente construídas: o homem como macho e a mulher como fêmea; normas essas que Butler chama de “matriz heterossexual”. [18] Butler: Problema de gênero, página 23 e 215 No tópico 6 do livro “Linguagem, Poder e Estratégias de Deslocamento”, Butler traz uma crítica a Wittig – à qual eu me senti inclinado a concordar com a lógica usada em seu argumento, ainda que eu não concorde com seu conteúdo.

Judith afirma que Monique valida a relação heterossexual ao escrever que o “sexo” torna-se – a partir do momento que se relaciona com um outro sexo oposto – ele mesmo, ou seja: que a mulher torna-se mulher ao se envolver com um homem. [19] Mentalidade essa que reafirma a tese conservadora de que mulher e fêmea assim como homem e macho são a mesma coisa. “[…] o sexo é tomado como um ‘dado imediato’, um ‘dado sensível’, como ‘características físicas’ pertencentes a uma ordem natural […]”. [20] Op.cit 

E “ordem natural ” é natural, não uma construção social, construção essa que, para Butler, é necessária para validar sua tese sobre “gênero”. Judith demonstra sua oposição a essa tese de “ordem natural” quando escreve: “[…] Wittig ocupa uma posição ambígua no continuum das teorias sobre a questão do sujeito. Por um lado, Wittig parece contestar a metafísica da substância, mas por outro, ela mantém o sujeito humano, o indivíduo, como locus metafísico da ação […]”. [21] Butler, página 49 Butler desenvolveu uma tese onde utilizou do que já havíamos falado sobre o Marquês de Sade: a validação do pensamento pelo próprio pensamento. Butler, em várias entrevistas que ministrou para ativistas GLS, no Brasil, confunde a realidade em si com a teoria queer, teoria por ela desenvolvida, pretendendo penetra-la na realidade – a definindo como a própria realidade em si.

Ou seja: Judith escreve que o mundo em que vivemos, onde o homem tinha seus papéis sociais e a mulher os dela, é, na verdade, uma prisão falocêntrica – um mundo falso, paralelo ao real, onde o macho oprime sexual, econômica e politicamente, a fêmea. Por isso, a pós-estruturalista pretende reavivar todo aquele no qual vive na margem desta realidade, na margem deste mundo – o mundo de Judith Butler. Isto é tão verdade que na definição de queer, Boudewijn nos mostra : “Queer, em inglês, significa bizarro, estranho, torto […] Na gíria, esse adjetivo é utilizado como um insulto cujo equivalente em francês seria puto, efeminado ou pederasta [ em português: viadinho, bicha, traveco]. Ele qualifica uma práxis e uma teoria que habitam o universo da exclusão e da margem. [ …] Judith Butler, que considera apenas como feminista, desempenhou um papel central no desenvolvimento desta teoria.[…] Alguns chegarão até a promover sexualidades alternativas, como a pornografia, a prostituição e as práticas sadomasoquistas”. [22] Bonnewijn, “Gender quem és tu?”, página 65

Butler ficou conhecida quando, vindo para o Brasil, em 2017, foi mal recebida por militantes de direita que rechaçavam as tentativas da escritora de normalizar a pedofilia. A escritora, por defender a construção social como o fator causal das atitudes e dos desejos humanos – ou desprezando ou diminuindo os fatores biológicos, genéticos e hormonais a escala de quase zero -, argumenta que as pessoas são, por isso, construídas ao longo dos anos e, dependendo de onde, e com quem, vivem, isso pode causar, consequentemente, a transformação do gênero neutro – ou em mal desenvolvimento – para um gênero já bem definido.

Essa definição pode fluir quantas vezes forem necessárias – até que aquele no qual o porta encontre um padrão em que se sinta, de alguma forma, representado: “Poderíamos definir gênero como a autopercepção que todo ser humano tem da própria sexualidade. Essa autopercepção não coincide com a sexualidade biológica e varia com o tempo. A opção de gênero não é uma escolha que se faz uma vez por todas na vida e pode mudar quantas vezes quisermos. Mais do que escolha, trata-se de uma espécie de construção nunca acabada: não escolho entre algo que outrem determinou, mas me orientou de maneira sempre fluida e aberta, para o meu desejo. O gênero é performativo […] não existe diferença entre homem e mulher […] não se nasce homem, não se nasce mulher. A cultura e a sociedade nos tornam homens e mulheres, mediante a imposição de comportamentos e padrões heteronormativos“. [23] Butler, página 69

Judith escreve que os seres humanos podem ser transformados em qualquer coisa que suas cabeças querem, ou seja: podem mudar de gênero; mas ela também adverte que homem e mulher não são bons gêneros, porque vieram de construções heteronormativas. Talvez se Butler escrevesse que ambos os gêneros vieram de sociedades “machistas”, ela poderia se validar pela sua lógica. Quando ela diz que homem e mulher são construções de sociedades heteronormativas, apenas diz que o quadrado tem quatro lados, que subir é para cima e descer é para baixo – já que, de uma sociedade heteronormativa, naturalmente, espera-se formar homens e mulheres.

Butler apenas endossa a própria lógica natural, e a culpa por ela ser ela mesma. Monique Wittig, de acordo com Judith Butler, é mais centrada no corpo lésbico – no lesbianismo político. Por isso, ela diz que “a lésbica” de Monique é o terceiro gênero, sendo que, para Butler, há tantos gêneros quanto pessoas; mais ainda: para Wittig, pressupor que “a lésbica” seja um novo gênero – divergindo do “homem” e da “mulher” -, endossa, ainda mais, o caráter binário opressivo, já que: “a lésbica” só se faz quando se tem a não vontade da mulher para com o homem. Ou seja: para o gênero lésbico existir, é necessário que se exista, a priori, tanto o homem quanto a mulher; pior ainda, para a lésbica existir, é necessário que a mulher goste, naturalmente, do homem.

Esse descontentamento com o lesbianismo de Monique pode ser vislumbrado no “Problemas de gênero”: “A regulação binária da sexualidade suprime multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompre as hegemonias heterossexual, reprodutiva e medico-jurídica. Para Wittig, a restrição binária que pesa sobre o sexo atende aos objetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsória; ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade compulsória irá inaugurar um verdadeiro humanismo da pessoa, livre dos grilhões do sexo […] a lésbica emerge como um terceiro gênero, prometendo transcender a restrição binária do sexo”. [24] Butler, página 47

Essa mentalidade de Butler – sobre “transcender a restrição binária do sexo” – já se faz presente no século XXI; pior ainda, por regulamentos da ONU, da UNESCO e da OMS, tornou-se não só “comprovada cientificamente”, como também obrigatória para qualquer cidadão – sobre pena de, para quem tente negá-la ou recusá-la, ser “antidemocrático”, “fascista”, “negacionista” e “mentalizador de Idade Média”.

 

ONU, aborto, esterilização voluntária e as IPPF- Clínicas de Planejamento Familiar


 

References

References
1 Engels; A origem da familia, da propriedade privada e do estado
2, 4 Ibidem
3 Kate Millett: Política Sexual; página 12
5 Pitirin Sorokin, A revolução sexual americana, 1961, página 20
6 Jorge Scala: IPPF A multinacional da morte, página 21
7 Millett, página 18
8 Millett, página 74
9 Millet, página 163
10 Ana Campagnolo: Feminismo: perversão e subversão
11 Millett, página 175
12 Percy Shelley, Libido Dominandi, página 111
13 Libido dominandi E. Michael Jones
14 Libido dominandi, E. Michael Jones, páginas 120-121
15 Judith Butler, Problemas de gênero, página 24
16 Witting: O pensamento heterossexual e outros ensaios, página 43
17 Butler: Probemas de gênero
18 Butler: Problema de gênero, página 23 e 215
19 Mentalidade essa que reafirma a tese conservadora de que mulher e fêmea assim como homem e macho são a mesma coisa.
20 Op.cit 
21 Butler, página 49
22 Bonnewijn, “Gender quem és tu?”, página 65
23 Butler, página 69
24 Butler, página 47
Jorge Teixeira

Jorge Teixeira nasceu em Guaratinguetá, SP, mora em Campinas. É aluno do COF desde 2020. Em setembro de 2021, tornou-se aluno da deputada estadual Ana Campagnolo. Protestante, nutre gosto por história e filosofia.

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