Caro leitor, este artigo tem como objetivo fazer uma análise crítica do filme da Netflix “Não olhe para cima”. Porém, como o título sugere, queremos ir um pouco além. Em filmes como este, é necessário que se faça uma Crítica da crítica. Dito de outro modo: é preciso fazer uma análise crítica não só do filme, mas das próprias análises críticas anteriores. Por que assim deve ser? Porque esse tipo de filme tende a resultar numa crítica reduzida, empobrecida, mal analisada – já que sua crítica é feita, mesmo nos melhores analistas literários, com base na visão míope de: “lacração” x “não-lacração”. É preciso, pois, ver o Todo, ampliar o horizonte de consciência, em suma: fazer uma Crítica da crítica.
Mas, antes de tudo, é preciso dar algumas advertências, a saber: I- este artigo usará de um método de análise Crítica-filosófica. Assim, seguiremos a maneira de análise que o nosso saudoso, e grande Mestre, Olavo de Carvalho fazia em seus artigos. [1] Para o leitor que queria saber mais ver: Carvalho, 2015, A dialética simbólica – sobretudo a parte II. II- decorrente da análise Crítica do filme, bem como da crítica, é inevitável que, neste artigo, haja spoilers. Portanto, para o leitor que, porventura, ainda não tenha assistido ao filme, recomendamos que assim o faça, e, posteriormente, volte a esta Crítica da crítica.
Pois bem, um dos motivos da crítica, como dos espectadores, entenderem o filme como “lacração”, deriva de algumas das declarações de seus atores, diretores, como da própria produtora. Segundo a matéria da “Istoé”, o diretor do filme, “Adam McKay, afirmou em suas redes sociais que o presidente Jair Bolsonaro “diria para as pessoas não olharem para cima”, uma referência a políticos negacionistas que optam por não reconhecer a verdade”. A matéria ainda diz que: “Para cientistas ouvidos pelo Estadão, “Não Olhar para Cima” é uma alegoria ao negacionismo – não importa quão evidente esteja o risco, parte da população não consegue vê-lo, ou prefere negá-lo, dizem. Para a bióloga Natália Pasternak, a comparação do cometa com o cenário brasileiro, seja pela perspectiva do problema existencial do aquecimento global ou da própria pandemia, é inevitável. “Tivemos o negacionismo com a questão amazônica antes mesmo da própria pandemia. Mas ele foi agravado. Se o filme fosse brasileiro, de repente o título poderia ser ‘é só uma gripezinha’”. [2] https://istoe.com.br/diretor-de-nao-olhe-para-cima-revela-papel-de-bolsonaro-no-filme/
Seria cômico, caso não fosse trágico, um “cientista”, emitir uma análise sobre um filme – isso para não falar da pobreza intelectual do jornalista, que assina a matéria, publicando tal declaração. Em épocas anteriores, um jornalista, sobretudo quando detinha estudos literários-filosóficos, sabia do seu papel Crítico da crítica. A uma “bióloga”, cabe a análise da profundidade, experiência, e mensagem, de um filme, tanto quanto cabe a um macaco voar. Pois bem, passado a asneira da “bióloga”, e a falta de intelecto do “jornalista”, vamos nos deter a declaração do diretor Adam. Surge-nos, então, a pergunta: um diretor pode dizer o que o filme é ou não é, depois de conclusa a sua obra? Essa pergunta não é desimportante.
Nos dias atuais, não é raro vermos diretores, produtores, ou mesmo atores, tentarem ressignificar a mensagem consagrada de uma obra. Um breve exemplo disso pode ser dado com uma das criadoras de Matrix, Lilly Wachowsk – que, em 2020 (17 anos depois da conclusão do último filme), deu a “maravilhosa” declaração de que o filme era “transgênero”. Assim, voltamos à pergunta: é legítimo que o criador da obra nos diga o que ela significa ou não? Ora, para responder tal indagação é necessário que façamos a Crítica da crítica. Para isto, iremos recorrer a 3 autores, quais sejam: Susanne Langer, Julius Greimas e Tzvetan Todorov.
Segundo a Susanne Langer: “A Arte, no sentido aqui proposto — ou seja, o têrmo genérico abrangendo pintura, escultura, arquitetura, música, dança, literatura, drama e cinema — pode ser definida como a prática de criar formas perceptíveis expressivas do sentimento humano. Digo formas “perceptíveis” e não “sensórias” porque algumas obras de arte se oferecem mais à imaginação do que aos sentidos exteriores”. [3] Langer, 1971, p.82 Mais à frente, a Susanne faz questão de ressaltar que o “sentimento” é mais amplo, e diferente, do que a “sensação” ou “sensibilidade”. Para a autora, a Arte é uma “forma expressiva” – que, como vimos, remete a percepção de um sentimento, da imaginação.
Daqui já nos é possível fazer alguns apontamentos sobre a nossa tese: caso a arte seja a criação, produção, construção, de “formas expressivas de sentimento” ou de “percepção imaginativa”, é possível concluir que um autor – ao criar uma obra artística – não expressa nela o significado que bem entende, mas sim uma intenção de despertar, no espectador, um sentimento interior. Esta intenção não se separa da forma expressiva, ou, dito de outro modo: não se separa da obra – o símbolo não se separa do significado, mas sim é por aquele expresso.
Podemos dizer que existem 3 tipos de “formas expressivas”: I- o sentimento que se expressa na sua própria forma; II- a forma de sentimento interior do espectador, e III – a forma pessoal. Na primeira, temos a forma perceptível no seu Todo, no seu ritmo. É aqui a forma mesma do filme, expressa no seu movimento: suas cenas, seus personagens, a dança e desenvolvimento do seu enredo, como totalidade – onde o conflito, drama, harmonia, estão expressos nas ações dos personagens, ao longo do ritmo próprio do filme. Na segunda, temos a forma que, como espectador, sinto, experimento; a visão de um outro mundo – que se forma em mim -, de uma forma contínua que me movimenta. Por último, temos a forma pessoal contínua – a concepção do autor, que o movimenta a um mundo próprio: a obra.
Corroborando com a nossa tese, diz a Susanne: “Uma obra literária é sempre um todo perceptível, com identidade própria; como um ser natural, tem um caráter de unidade orgânica, auto-suficiência, realidade individual. E é dêsse modo, como aparência, que uma obra de arte é boa, má ou apenas medíocre — enquanto aparência, não enquanto comentário de coisas além de si própria, ou como lembrete de tais coisas“. [4] Langer, 1971, p.84 Com isso, fica muito claro que pouco importa o comentário tecido pelo seu autor. A obra não se separa de seu significado próprio, mas é expressa em sua “identidade” mesma, em seu símbolo, em sua “realidade individual”, “autônoma”, em sua forma-totalidade.
A Susanne ainda vai nos dizer que essa “expressão” tem o sentido de “dar vazão aos nossos sentimentos”: “A auto-expressão é uma reação espontânea a uma situação real e presente, um evento, as pessoas com que estamos, as coisas que os outros dizem, ou o efeito que o tempo nos causa; indica o estado físico e mental em que nos encontramos e as emoções que nos animam”. [5] Ibidem Há também, segundo a autora, uma outra forma de expressão: “Em outro sentido, porém, “expressão” significa a apresentação de uma idéia, usualmente pelo emprêgo próprio e adequado de palavras… Uma sentença, que é uma combinação especial de palavras, exprime a idéia de algum estado de coisas, real ou imaginado. Sentenças são símbolos complicados”. [6] Op.cit