Diz Aristóteles, em seu tratado de Política, que a cidade é uma associação a qual visa um bem – neste caso, um bem comum. Ora, em português, a palavra “comum” é preciosa porque, assim como a palavra “poder”, ela emite a ideia precisa do que ela é: comum é o próprio de unidade, ser um com outro, comunhão de ideias, comunhão de duas ou mais pessoas cordatas entre si. As palavras comum e município possuem um parentesco de ideias e de etimologia, pois a primeira trata da união de pessoas com um bem em comum a se realizar, e a segunda é a fortificação desta comunidade – local onde estas “ideias” comungadas ganham literalmente um corpo, a cidade.
No conceito romano, e no conceito greco-aristotélico, há a comunhão do que seja a cidade – que é a comunhão de valores e ideias de pessoas livres, ou seja, civis, e, por isto mesmo, civilização. Portanto, a civilização é a construção da comunhão de valores, ou seja: não existe civilização sem que haja a comunhão de valores e ideias de homens livres. Pois bem, isto significa que a civilização é construída, antes de tudo, por ideias que uma comunidade apreende e compreende como sendo a realidade; é a luta por se preservar de toda ruína ao longo do tempo.
A literatura é aquilo que tem o papel primordial na produção desta comunhão de valores e ideias, pois é a responsável por difundi-las, através da educação – o ato de conduzir o cidadão, ou potencial cidadão, para fora de seu eu, atomizado no recanto familiar. Mas a literatura – que ora arguimos ser a primordial munição para o construto comungado de ideias – é a alta literatura, porque ela é fruto de uma longa tradição de ideias – as quais vão absorvendo, de geração em geração, à rica experiência das gerações passadas. Isso significa dizer que a alta literatura é, essencialmente, uma Tradição (com letra maiúscula) – e, numa civilização, desempenha um dever semelhante àquilo que a religião tem dever principal, isto é, religar o homem ao seu Criador.
Assim, a literatura também tem papel de religar, mas religar uma geração com a outra, de um coração para outro coração, uma verdade à outra – criando a ponte de travessia que não pode ser quebrada. Recorremos àquela imagem do corredor da tocha olímpica: a tocha é o conhecimento passado de mãos em mãos, de coração em coração, de geração em geração. A alta literatura é como Fidípedes – como a sua notória façanha de dar a vitória antes que seja tarde, antes da derrota massacrante.
Cada elemento do saber passado, é absorvido, de geração em geração, pela inteligência; é uma corrida de maratona pela vitória antes de uma possível derrota, porque a derrota de uma civilização ocorre quando não há mais a comunicação e a tradição, quer dizer: este trazer e conduzir uma inteligência para fora. A literatura não é obra que visa uma inovação futura, mas sim assegurar o que já se construiu – assegurando também que os próximos corredores possam levar a tocha do conhecimento adiante. Este esforço para absorver a experiência, perpassada pelas gerações humanas, é contínuo, e é feito individualmente.
Mas o que vemos hoje é uma abrupta quebra deste esforço. Pois bem, a palavra comunhão também tem outra parente próxima: a palavra comunicação – que é o ato de unir, por meio de uma linguagem compreensível e acessível, um conhecimento de alguém com o de outro. Mas se, por um defeituoso abandono da Tradição, esta linguagem se quebra, quebra-se também a comunicação possível e, portanto, a experiência e o conhecimento possível.