O mundo bidimensional é o mundo do fantástico, do sentimento puro – dos chakras, a alma, produzindo jutsus, manipulando o poder da natureza; das reiatsus, liberação de uma força física-espiritual – produzindo energia nas espadas; das individualidades, que dão às pessoas superpoderes; do Ki, força manipulável da energia do corpo, produzindo esferas de poder, explosões; dos grimoires, poderes mágicos, que produzem feitiços; das magias dos clãs dos demônios, anjos, fadas, gigantes, feiticeiras, etc.
Tudo no anime nos traz a esse fantástico, a esse sentimento vivo, indizível. Diz a Susanne Langer que: ”Pode-se prosseguir quase que seguindo a construção de uma forma artística que é completamente orgânica e, portanto, capaz de articular os grandes ritmos vitais e seus harmônicos, [suas] sugestões emocionais. O que tal forma simbólica apresenta não pode ser expressa em termos literais, porque a lógica da linguagem nos permite conceber a penetrante ambivalência que é característica do sentimento humano”. [1] Langer, 2019, p.237
Já dissemos que esse ritmo é o próprio anime, a própria cena. A ambivalência do anime está não só na escolha entre o real e o fantástico, mas também entre essa experiência vivida – que move-me num sentido -, e a concepção de vida que moveu o autor no sentido da obra. Por que essa ambivalência é ressaltada no anime? Porque, como lembra a Susanne, essa “força”, esse “poder”, não pode ser estabelecida cientificamente, racionalmente. Ela é uma “experiência direta”, “virtual”, “semelhança não-real” – faz parte de uma “imaginação pre-cientifica”, não calculável ou não matematizada.
Todorov faz uma distinção entre o “fantástico-estranho” e o “fantástico-maravilhoso”: “Ao finalizar a história, o leitor, se o personagem não o tiver feito, toma entretanto uma decisão: opta por uma ou outra solução, saindo assim do fantástico. Se decidir que as leis da realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra pertence a outro gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso”. [2] Todorov, 2008, p.39
Dá-se o fantástico-estranho quando o sobrenatural é explicado, que todo o ocorrido pode ser racionalizado. A partir de então compreendemos que o sobrenatural nunca existiu; no fantástico-maravilhoso, o sentimento do sobrenatural é aceito, reconhecido como ordem legal, realidade. Assim, diz Todorov: “…o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, ainda não visto, o por vir: por consequência, a um futuro. No estranho, em troca, o inexplicável é reduzido a feitos conhecidos, a uma experiência prévia, e, desta sorte, ao passado. Quanto ao fantástico em si, a vacilação que o caracteriza não pode, por certo, situar-se mais que no presente”. [3] Todorov, 2008, p.40
Há o estranho quando relacionamos esse sobrenatural ao nosso passado calculado, cientifizado logicamente. Neste caso, o sobrenatural é conhecido através das leis racionais da realidade, porque não nos são habituais – nos provocando inquietação, reações, medos e sentimentos. Já o maravilhoso é um sobrenatural que não desafia tanto assim a razão, pois é uma dimensão superior, mas que nos parece familiar. Podemos citar aqui o exemplo do anime Death Note. Somos levados à história do estudante colegial Light Yagami. O personagem principal, assim como em Bleach, vive no mundo normal, frequenta a escola, mora numa cidade do Japão do século XXI – que é assolada por ondas de criminalidade. Um dia, Light vê um caderno preto jogado no jardim da escola; na capa deste caderno havia um nome escrito: “Death Note” (caderno da morte); ao abri-lo, Ligth depara-se com as instruções de uso: “o humano que tiver o nome escrito nesse caderno deverá morrer”.
Neste momento, Ligth fecha o caderno, pois acha isso uma piada “ridícula”, como as correntes de internet – que dizem que você será amaldiçoado, caso não siga as instruções. Surge a vacilação do personagem ao se deparar com a interpretação ambígua: o real x sombrio. Por fim, Light decide levar o caderno consigo. O personagem continua a ler as instruções, e, ainda vacilando ante a reação interpretativa a se tomar, escolhe escrever um nome. Assistindo ao noticiário, ele vê a notícia de um homem de 42 anos, que está com 8 reféns – e que, no dia anterior, havia matado 6 pessoas. Assim, Light decide escrever o nome desse homem, e, ao fazê-lo, depara-se novamente com o “inadmissível”: o homem havia mesmo morrido. A expressão de Light vacila: não havia como explicar aquilo pela ordem legal da realidade. Light então decide testar o caderno mais uma vez – já aceitando ser possível a intrusão de uma nova lei da natureza, de um mundo “misterioso”.
Ao escrever o nome de um homem – que estava prestes a estuprar uma menina -, Light vê que o homem morre atropelado por um caminhão. Finalmente, ele soluciona o acontecimento: “é a prova. O Death Note é real”. É assim que surge o Ryuk, o shinigami dono do caderno. Ao vê-lo, Ligth já havia aceitado uma nova ordem natural do mundo, um mundo “divino”, “celeste”. Ao longo do anime, podemos acompanhar as inúmeras mortes, cometidas pelo Ligth, na busca de uma sociedade – por ele considerada – “justa”. Para Light, o mundo está uma “podridão” , e todos aqueles que são podres “devem morrer”. O personagem decide usar essa força “celeste” para “limpar o mundo”. Em Death Note, não é só o personagem que se confronta com o “fantástico-maravilhoso”, mas também o espectador. Ora, é claro que no mundo real não existe um “Death Note”, capaz de matar pessoas como bem quisermos. Porém, em nosso mundo, existem pessoas dispostas a tais atos, e com diversos meios disponíveis ( armas, bombas, vírus, etc).
Ao assistirmos Death Note, confrontamo-nos com um sobrenatural, que nos é familiar, qual seja: “estando eu no lugar do Light, faria o mesmo?”, ou “tendo os meios disponíveis, devemos realmente matar as pessoas ruins?”, e “estaria o Light certo?”. Essa dúvida, essa incerteza, esse vacilar ante o acontecimento, é o que podemos chamar, em nosso mundo real, de “moral” – força “misteriosa”. Passamos a aceitar uma lei divina em nosso mundo real, que nos é superior e familiar. Aliás, o próprio anime apresenta, mesmo no personagem “divino”, um pouco de uma força superior – isso fica claro quando o Ryuk fala que deixou o caderno, no mundo humano, porque estava entediado. Tal cena, revela o fato de que até mesmo um shinigami precisa de um sentido na vida , algo superior e sobrenatural.
A Susanne Langer corrobora conosco, na medida em que: “Reflexões poéticas, não são sequências de raciocínios lógicos, embora possam incorporar fragmentos, pelo menos, de argumentos discursivos. Essencialmente elas criam a semelhança de raciocínio; da seriedade, ansiedade, a sensação de conhecimentos que crescem, convicção e aceitação… um poeta geralmente constrói… em torno da ideia que o impressiona, na época, como verdadeira e importante, mas não com a finalidade de debatê-la. Ele a aceita e exibe seu valor emocional e possibilidades imaginativas”. [4] Langer, 2019, p.228-229
Mais à frente, a Susanne fala sobre a nossa tese do aspecto moral: “O pensamento discursivo… tão profundamente enraizado na linguagem… é, por sua vez, o molde de nossa experiência individual. Observamos e temos em mente o que é “falável”. O inefável pode imiscuir-se em nossa consciência, mas é sempre algo como um hóspede temeroso, e nós o admitimos ou recusamos, de acordo com o nosso temperamento, com uma sensação de mistério”. [5] Langer, 2019, p.230
O Todorov vai dizer que o tema do fantástico é, justamente, esta “percepção particular” dos acontecimentos – e é aí onde defendemos que o anime é a figura mais perfeita do fantástico, porque, como diz a Susanne Langer: “As aparências de eventos em nossas vidas reais são fragmentárias, transitórias e frequentemente indefinidas – como o espaço em que nos movemos, o tempo que sentimos passar, as forças humanas e desumanas que nos desafiam. A tarefa do poeta é criar a aparência de “experiências”, a semelhança de ventos vividos e sentidos, e organizá-los de modo que constituam uma realidade pura e completamente experimentada, uma peça de vida virtual”. [6] Langer, 2019, p.221
O anime tem a característica própria de, por ser bidimensional, apresentar o conflito entre a vida lógica-real e o mundo da imaginação. No anime, os eventos são “simplificados”, porque são bidimensionais, mundo figurado – onde tudo é possível; ao mesmo tempo, percebemos esses eventos de “maneira muito mais completa do que à mistura de acontecimentos” de nossa história – é aqui o mundo “próprio”, “sobrenatural”, “inexplicável”, da experiência de um movimento contínuo à “moral” da obra, do autor, e de mim mesmo.
Todorov destaca que: “Em primeiro lugar, o fantástico produz um efeito particular – medo, horror ou simplesmente curiosidade -, que os outros gêneros não podem suscitar. Em segundo lugar, o fantástico serve à narração, mantém o suspense: a presença de elementos fantásticos permite uma organização particularmente rodeada da intriga. Por fim, o fantástico tem uma função a primeira vista tautológica: permite descrever um universo fantástico, que não tem, por tal razão, uma realidade exterior à linguagem; a descrição e o descrito não têm uma natureza diferente”. [7] Todorov, 2008, p.82
Ora, a linguagem do fantástico é a linguagem do anime, o símbolo de linguagem, que está presente na experiência da obra, no personagem – figura retórica. O símbolo é identificado com o significado, com o sentido, na própria obra – no sentimento que ela nos passa e nos faz vivenciar esta força “virtual”, “misteriosa”. Isso fica bem claro quando o Todorov nos diz que “a felicidade do personagem é idêntica a do narrador que foi capaz de imaginá-lo, que pôde escrever sua história”. O “sobrenatural” manifesta-se a si mesma na obra – quando ela se choca com o mundo “real” do personagem.
Assim, a linguagem do personagem é a linguagem do autor, a linguagem “indizível”, dessa “moral-misteriosa”, que se simboliza pelas ações do personagem. A linguagem (o seu sentido), não se separa do anime, mas é percebida, visualizada, movimentando-nos numa concepção pessoal e contínua de um mundo “próprio” -“sobrenatural”, “celeste”. Todorov vai nos dar um exemplo esclarecedor: “Um conto de Robert Scheckley… começa com a descrição de uma inverossímil organização que suprime a existência de pessoas indesejáveis; ao final do relato, adverte-se que esta idéia é familiar a tudo ser humano (Serviço de eliminação). Neste caso é o leitor quem sofre o processo de adaptação: posto primeiro frente a um fato sobrenatural, termina por reconhecer sua “naturalidade””. [8] Todorov, 2008, p.150
Todorov vai dizer também que a forma mais estável do sobrenatural é aquela em que desenvolve uma ação, que relata histórias. Por isso: “O conto de fadas nos dá a primeira forma, e também a mais estável do relato: é precisamente nesse conto onde se encontram acima de tudo elementos sobrenaturais”. Assim, “todo relato é movimento entre dois equilíbrios semelhantes mas não idênticos. Ao começo do relato há sempre uma situação estável, os personagens formam uma configuração que pode ser móvel, mas que conservam intactos certo número de traços fundamentais. Digamos, por exemplo, que um menino vive no seio de sua família; participa de uma micro-sociedade que tem suas próprias leis. Continuando, acontece algo que quebra essa tranqüilidade, que introduz um desequilíbrio… desse modo, o menino deixa, por um ou outro motivo, sua casa. Ao final da história, depois de ter agüentado muitos obstáculos, o menino, que cresceu, volta para a casa paterna. O equilíbrio volta então para estabelecer-se, mas já não é o do começo: o menino já não é um menino, é um adulto como outros”. [9] Todorov, 2008, p.142
Esse movimento entre desequilíbrio e equilíbrio, é o ritmo – que é a imagem própria do anime, qual seja: seu “esquema fundamental”. É o ritmo que opõe eventos estáticos a eventos dinâmicos. Como diz a Susanne, esse esquema fundamenta-se no : “jogo de poderes virtuais [que] manifesta-se nos movimentos de personagens ilusórias, cujos gestos preenchem o mundo que criam – um mundo remoto, racionalmente indescritível, em que forças parecem tornar-se visíveis”. [10] Langer, 2019, p.205
Esse esquema de equilíbrio-desequilíbrio, estático-dinâmico, pode ser visto em diversos animes. Podemos citar: I- o exemplo do anime “Black Clover”. Noelle, uma das protagonistas, pertence à família Silva (uma família da realeza.) No mundo de Black Clover, a realeza é aquela que mais é prestigiada com títulos e pode mágico. Porém, Noelle, desde pequena, nunca conseguiu controlar sua magia; seus ataques vão para qualquer lugar, menos para o alvo. Por conta disso, e por ser acusada de, ao nascer, ter matado sua mãe, Noelle é rejeitada e humilhada pela família. Ela é renegada ao grupo dos “Touros Negros”, considerado o grupo mais fracassado do reino. Lá, ela conhece o protagonista Asta – que nasceu sem poder mágico, mas nunca desistiu do seu sonho de se tornar “Rei Mago”. Noelle começa a ver o quanto Asta, mesmo sendo menosprezado por não ter magia, esforçava-se, e o toma como exemplo – chegando a por ele se apaixonar.
No episódio 21, os personagens estão numa festa com a família Silva, que começa a humilhar Noelle; Asta enfrenta os irmãos de Noelle, colocando Solid de joelhos. Asta passa a ser, para Noelle, o acontecimento “sobrenatural”, força “misteriosa”, que rompe o equilíbrio da lei imutável da natureza, a saber: Noelle sempre seria a fracassada e humilhada da família – por não conseguir controlar os seus poderes. É assim que chegamos no episódio 77, onde Noelle enfrenta seu irmão Solid, derrotando-o com apenas um golpe. Noelle, que outrora era renegada, desconfiada de si, aperfeiçoa seu poder, tornando-se uma das personagens mais poderosas do anime. No episódio 125, descobrimos a verdade: a mãe de Nolle havia morrido devido a uma maldição do demônio Megicula. É então que Noelle – motivada por salvar Asta, bem como fazer a justiça por sua mãe -, no episódio 165, rompe de vez com essa “lei fixa”, enfrentando Megicula – e desenvolvendo uma nova forma de poder.
Noelle sofre a intervenção de uma “força sobrenatural”, de uma “moral inexplicável”, que a chocou entre dois mundos: o da ordem legal-real e o da ruptura da legalidade (mundo “misterioso”). A mesma coisa acontece com o Asta, que – sendo ridicularizado por não ter magia, em um mundo onde a magia é a ordem legal-real – nunca desistiu de seu sonho: tornar-se “Rei Mago”. Asta transgride a regra preestabelecida do real, rompe a “lei fixa”, esforça-se, treina, enfrenta os mais poderosos adversários, e, nos episódios 165-168, vemos o seu poder “sobrenatural” inserir uma nova regra na natureza, outrora estabilizada – tornando-se o personagem mais forte de todo o anime.
II- anime “Boku no Hero”. No episódio 11, da terceira temporada, vemos o personagem principal, All Might, lutar contra o vilão principal, All For One. All Might já havia passado seu poder para o jovem Midoriya, que continuaria o legado do poder chamado “One For All” – um poder que era passado de geração em geração. Na luta, All Might tinha apenas uma fagulha daquele poder, enquanto o All For One podia criar diversos tipos de “individualidades” (poderes). Em dado momento da luta, All For One consegue levar All Might ao limite de seu poder, e de seu corpo físico. Somos então levados a ver uma “lei fixa”, uma “regra imutável”, a saber: o limite físico do personagem, que esgota os seus poderes , e está ante uma força preestabelecida da natureza imutável. Porém, All Migth escuta o pedido de uma moça, que está presa nos escombros: ela pede socorro.
Ao ouvir o pedido, All Might lembra das palavras de sua mestre, e de todos aqueles aos quais ele deve proteger. All For One continua a lhe desferir golpes, dizendo que está na hora de “parar de falar de emoções e começar a falar da realidade”. All For One , numa visão massacrante, combina todos os seus poderes – este, diante do All Migth, representa a realidade brutal, imutável, estática, que não admite qualquer modificação em suas leis. O poder do All For One estoura o braço do All Migth – fazendo-o jorrar sangue, e o lançando para trás. All Migth lembra então que ainda tinha um dever: ser professor Midoriya; o personagem cerra os punhos e acerta o All For One, derrotando-o.
All Migth foi movido por essa “moral misteriosa”, esse “poder celeste”, de proteger aqueles que ama, de cumprir o seu dever como herói, mesmo diante da coação da inalterável ordem da realidade: sua fraqueza e limitação, ante um inimigo de poder esmagador. Esta cena, caro leitor, arrepia e emociona a qualquer pessoa; nela, somos movidos a concepção contínua de um mundo, que está além do nosso – um mundo onde sentimos a ação dos personagens, ao vivenciar a frase “Vá além, plus-ultra!”. Podemos verificar isso ao longo de todo o anime “Boku no Hero”, seja em Midoriya – que nasceu sem poderes, e torna-se o sucessor do “One For All” -, seja no Endeavor – que assume o lugar do All Migth, logo após a perda de seus poderes, mas que é desacreditado pela sociedade como capaz de salvá-los.
III – no anime Naruto. Vemos o personagem principal, Naruto, como “Jinchuuriki” da “Kyuubi”(Raposa de 9 caudas). Konoha, a vila da folha, sofre um ataque da “Kyuubi”, que é derrotada por Minato, o pai de Naruto. Na batalha, Minato e Kushina se sacrificam, selando a “Kyuubi” em seu filho Naruto – confiando que um dia ele seria capaz de usar do seu poder. Por conta disso, Naruto sempre foi rejeitado por toda a vila. Sem pais, sem amigos, sem família, Naruto vaga por todo o anime buscando aceitação e reconhecimento, mas todos o desprezam como o menino “demônio da raposa”. Ainda assim, Naruto nutria um sonho: tornar-se um Hokage, para proteger toda a vila. Durante todo o Naruto clássico, o personagem defronta-se com essa “lei fixa”, com uma ordem da natureza preestabelecida.
Porém, o Naruto move-nos numa concepção “sobrenatural” de mundo, mundo “moral”, quando, mesmo estando diante dessa realidade, expressa em suas ações uma linguagem “indizível”: a de nunca desistir. Mesmo sendo humilhado, tido como fraco, um ninja fracassado e sem talentos, Naruto treina, esforça-se, em um nível sobre humano; decide enfrentar inimigos tidos como gênios, e, mesmo caído diante deles, nunca deixa de dizer que “não desistiria” porque aquele “era o seu jeito ninja”. Ao longo de todo o anime clássico o Naruto consegue façanhas grandiosas, derrotando os ninjas mais poderosos da vila, e ganhando o carinho de muitos daqueles que o rejeitavam. É assim que chegamos ao episódio 175 do Naruto Shippuden, onde o Naruto derrota Pain, um dos maiores vilões do anime – que havia destruído “Konoha”.
Quando o Naruto volta da batalha, ele é recebido por toda a vila – que um dia o desprezou – com choros, palmas, e celebrações; o Naruto, naquele momento, era alçado, nos braços da Vila, como Herói. Esse episódio, caro leitor, faz com que o mais “durão” do ser humano tenha um cisco no olho. Vemos a retrospectiva de toda a trajetória do personagem – aos olhos de seu sensei Iruka. Naruto é um dos animes que nos leva a ver um outro mundo: um mundo de “leis celestes”, mundo “moral inexplicável” – que quebra a rigidez do real, o equilíbrio estático do “admissível”.
IV – no anime “Re-Zero”, temos este exemplo no Subaru e na Emília; V – no anime “Histórias de Fantasmas” temos esse exemplo no Amanojaku; VI – no anime “Darling in The Fraxx” temos esse exemplo no Hero e na Zero Two; VII – em “Bleach”, como já citamos, temos isso no Ichigo – que recebe seus poderes da Rukia, tendo de perdê-los para poder dominar a técnica chamada “Saigo no Getsuga Tenshō” , derrotando assim o vilão principal Aizen. Esses são apenas alguns exemplos dessa “dança rítmica”, entre o equilíbrio–desequilíbrio, que o anime nos dá.
O anime representa o melhor exemplo de uma “moral misteriosa”, de uma “lei divina”, que confronta, e desestabiliza, o nosso mundo racional-estabelecido. Por fim, o Todorov vai nos dizer que há um outro tipo de “maravilhoso” no fantástico : o “maravilhoso cientista”. Neste, o sobrenatural é explicado de maneira racional, mas partindo de leis próprias – que a ciência contemporânea não reconhece. A lei racional, deste tipo de fantástico, não está na lei natural-lógica do mundo real, mas sim na lógica do próprio relato, das premissas “irracionais” , que tornam-se racionais pela ação rítmica do personagem.
Podemos citar como exemplo os animes “Darling in The Fraxx” e “Evangelion”. Neste, temos o caso da Rei Ayanami, que é chamada de “série Ayanami”, por ser um clone do DNA de Yui Ikari – mãe do personagem principal Shinji. No mundo real contemporâneo, o processo de clonagem não é reconhecido como racional, ou admitido logicamente; no anime, não há a questionabilidade do processo relatado, da premissa envolvida. Não só isso: esse “sobrenatural” faz com que experimentemos o mundo do relato numa concepção real-lógica. Já em Darling, temos o caso da Zero Two, que é a clone do DNA “alienígena” da Princesa Klaxosaur. No anime, em nenhum momento questionamos o relato como “irracional”; pelo contrário: podemos ver a caminhada da personagem na tentativa de tornar-se humana, de ser acolhida como humana. O ritmo do anime, seu relato, leva-nos a vivenciar uma concepção lógica daquilo que seria, no mundo real, cientificamente ilógico.
A mesma situação acontece nos animes chamados “Isekais” – onde o personagem morre e reencarna em outro mundo, ou utiliza de uma tecnologia para entrar em outro mundo. São exemplos deste tipo de anime: “Re-zero”, “Tensei Shitara Slime Datta Ken”, “The Rising of the Shield Hero”, “Sword Art Online”, etc. No caso deste último, temos também o caso de uma antecipação tecnológica. No anime, somos apresentados ao “Nerve Gear”, um capacete que estimula os cinco sentidos do usuário através de seu cérebro. O “Nerve Gear” leva o jogador até o “VRMMORPG” – uma realidade virtual. Os personagens acabam sendo presos dentro do jogo, por seu criador. Tendo de viver por anos naquela realidade virtual, os personagens, caso morressem no jogo, morreriam na vida real. Bem, não precisamos dizer que essa premissa “irracional” vem sendo tentada, em nosso mundo real, com a tecnologia chamada “metaverso”.
Portanto, acreditamos ter sustentado, e embasado, a tese de que o anime não é um mero desenho infantil, mas sim a melhor representação de uma imaginação fantástica-filosófica.