Teria algum espaço, em nossa literatura, uma história cujos personagens são absolutamente bons? Não digo santos, como o que tentou fazer George Bernanos em Journal d’un curé de campagne [1] La Revue hebdomadaire, 1935-1936 ; Paris, Plon, 1936. , nem um super-herói de histórias em quadrinhos, mas uma história simples de um tema simples que aqueça os corações das moças, dê esperança aos rapazes e faça marejar os olhos das moças, e também dos críticos, pois denotaria ainda existir bondade e pureza em meio a uma sociedade decadente e corrupta.
Poucos são os personagens de nossas letras que são realmente bons (Lima Barreto poderia ter feito um tipo assim), a trilogia de romances de Isaías Caminha, Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá [2] Refiro-me à Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). , aponta nessa direção, começa com um noviço derrubado por seu meio social, depois vem o autêntico patriota perdido na sociedade e tomado como louco, encerra no militar, inteligente e dotado da força de uma personalidade formada que, contudo, fica a uma distância higiênica daqueles que o cercam, como bem notou Olavo de Carvalho:
“A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor, retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma progressiva depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação empírica imediata para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma medida, se desliga de todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma vida não na vingança, mas no perdão”. [3] Carvalho, Olavo de. O milagre da solidão. Bravo! Nº13, outubro de 1998. Disponível em: https://olavodecarvalho.org/o-milagre-da-solidao-olavo-de-carvalho/ .
Apenas três anos depois da publicação do último título da trilogia, Lima Barreto vem a falecer com precoces 41 anos. Do que sairia de sua pena é um mistério, levou pro caixão muitas ideias que não se eternizaram em anotações, todavia não seria de todo mal supor a criação de uma personagem autenticamente boa, um algo a mais em relação a média da sociedade que o cerca ao menos, como aludi, estava em fase sincera de crescimento interior, sua pessoa encontrava seu lugar após tantas dificuldades; seu pai enlouqueceu, sua mãe morreu, foi internado num hospício para tratar do vício em álcool e, ainda mais, quando escritor consolidado, tentou com afinco ingressar nos imortais da Academia Brasileira de Letras (foi recusado todas as vezes e por quase todas as casas literárias do Rio de Janeiro).
No mesmo sentido de Gonzaga de Sá, o conselheiro Aires de Machado de Assis [4] O conselheiro Aires se faz presente em dois romances de Machado de Assis: Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). também representa o sábio que vive fora, distante da sociedade; tem personagem semelhante em São Bernardo de Graciliano Ramos. [5] Editora Arial, 1934. Algo lhes falta, estão numa preparação para serem grandes pessoas, num eterno vir a ser de um país por tanto tempo marcado por ser um “país do futuro” de um futuro que jamais chegou. Com o presente texto, pretendo anunciar o rompimento desta tendência, ao menos no que diz respeito a personagens literários.
Publicado em 1939, o romance do qual falaremos é O amor infeliz de Marília e Dirceu, o autor é o mineiro Augusto de Lima Jr (1889-1970), primogênito do poeta, jurista e político Augusto de Lima e de Vera Monteiro de Barros de Suckow de Lima, concluiu seus estudos na Faculdade de Direito de Minas Gerais. Em 1911, acompanhou a família na mudança para o Rio de Janeiro, devido à eleição de seu pai como deputado federal por Minas Gerais. Na nova cidade, uniu-se em matrimônio com Teodosia de Castro Cerqueira. Depois, no Rio de Janeiro, construiu sua carreira na Marinha, culminando com sua aposentadoria em 1944 no cargo de procurador do Tribunal Marítimo. Sua contribuição ao Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais é notável, sendo o patrono da cadeira número 23, além de ocupar a cadeira número 27 da Academia Mineira de Letras.
Realizou duas missões oficiais em Portugal. Em uma delas, em 1936, foi incumbido pelo governo de Getúlio Vargas de negociar o traslado ao Brasil dos restos mortais dos inconfidentes mineiros exumados na África, que hoje repousam no Museu da Inconfidência. Foi peça-chave no decreto de Vargas que declarou Ouro Preto como monumento nacional e idealizou a entrega da Medalha da Inconfidência. Augusto de Lima Jr também deixou sua marca no jornalismo, colaborando com vários periódicos cariocas, como A Gazeta de Notícias, A Noite, Jornal do Brasil, Jornal do Commercio e Correio da Manhã. Em Belo Horizonte, fundou o Diário da Manhã e a Revista de História e Artes. Seu prestígio foi reconhecido em Portugal com a Ordem Militar de Cristo (nos graus de Comendador e Grande-Oficial) e com a Ordem do Infante D. Henrique (grau de Comendador).
Mas é do romance que escreveu que nos deteremos; aquela altura da publicação de O amor infeliz de Marília e Dirceu, Lima Jr já possuía notável prestígio literário, havia publicado os romances A cidade antiga (1931), Mariana (1931) e Mansuetede (1932), o conjunto de ensaios históricos Visões do passado (1934), o volume de poesias Canções de Grupiara (1935) e dois trabalhos historiográficos, Histórias e lendas (1935) e Soledade (1935). Nesse contexto, buscará dar um passo adiante em sua prosa romanesca e traçará, em nossas terras, uma história de amor profundamente inspirada no clássico de Shakesperare, Romeu e Julieta; muitas são as características em comum que serão apresentadas à medida de sua narrativa adiante.
References
↑1 | La Revue hebdomadaire, 1935-1936 ; Paris, Plon, 1936. |
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↑2 | Refiro-me à Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). |
↑3 | Carvalho, Olavo de. O milagre da solidão. Bravo! Nº13, outubro de 1998. Disponível em: https://olavodecarvalho.org/o-milagre-da-solidao-olavo-de-carvalho/ . |
↑4 | O conselheiro Aires se faz presente em dois romances de Machado de Assis: Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). |
↑5 | Editora Arial, 1934. |