A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro. Por isso, a beleza das coisas criadas não pode saciar, e suscita aquela arcana saudade de Deus que um enamorado do belo, como S. Agostinho, soube interpretar com expressões incomparáveis: “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!
– Papa João Paulo II [1] Carta aos artistas. Papa São João Paulo II. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul- ii/pt/letters/1999/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists.html
Este artigo irá tratar da entrada, e consequências, do fetiche utilitarista na arquitetura sacra – visto que o fetiche utilitarista é um dos problemas estruturais da concepção da arquitetura moderna. O utilitarismo, iniciado na Escola Bauhaus como um meio de tornar tudo utilitário, foi deixando de lado os ornamentos e os detalhes iconográficos – escondendo o belo num segundo plano. Não bastasse sua influência no meio pagão, a arquitetura moderna invadiu também as Igrejas e acabou enterrando os princípios fundamentais da arquitetura sacra – nos termos definidos por Duncan Stroik, reconhecido arquiteto norte-americano, autor e editor fundador da revista especializada “Sacred Architecture Journal”: verticalidade, direcionalidade, iconografia, ordem geométrica e durabilidade.
O que se vê nas arquiteturas modernas, senão galpões quase vazios, com bancos, tapetes e balcões, como uma repartição pública, tão opressora quanto uma Receita Federal? Sumiram assim as iconografias, conforme já dito, um dos pontos chave da arte sacra. As catedrais, as igrejas e os templos são as moradas da transcendência, cuja finalidade deveria ser levar os fiéis a entender a beleza do cristianismo, e a representação deste dentro daqueles espaços. Uma vez que os fiéis encontram estes ambientes vazios de sua representação, e alheios aos princípios fundamentais, como experimentariam as coisas belas? Olavo de Carvalho nos lembra da Apeirokalia, que consiste exatamente na falta de experiência das coisas mais belas: “… entendia-se que o indivíduo que fosse privado, durante as etapas decisivas de sua formação, de certas experiências interiores que despertassem nele a ânsia do belo, do bem e do verdadeiro, jamais poderia compreender as conversações dos sábios“. [2] Apeirokalia. Acesso em 21/11/2020 Disponível em: http://old.olavodecarvalho.org/livros/apeirokalia.htm
Ao adentrar numa catedral, ou mesmo uma igrejinha simples, corpo e alma do indivíduo descansariam e encontrariam a paz – fruto da admiração do belo, do bom e do Verdadeiro, caso a estética, desses ambientes, lhes trouxesse uma compreensão do transcendente, com os ornamentos bem colocados. E é esta admiração que lhe é negada pela arquitetura moderna. O utilitarismo, desse estilo moderno, impossibilita a compreensão dos símbolos, dos detalhes da arte sacra, e das impressões de um espaço branco desornamentado – que podem ser vazias e atormentadoras. Assim, ainda sobre a Apeirokalia Olavo de Carvalho diz: “Quem conhece a importância decisiva que Aristóteles atribui às impressões imaginativas, entende a gravidade extrema do que ele quer dizer: essas impressões profundas exercem na alma um impacto iluminante e estruturador. Na ausência delas, a inteligência fica patinando em falso sobre a multidão dos dados sensíveis, sem captar neles o nexo simbólico que, fazendo a ponte entre as abstrações e a realidade, não deixa que nossos raciocínios se dispersem numa combinatória alucinante de silogismos vazios, expressões pedantes da impotência de conhecer“. [3] Op.cit
Aristóteles, no início do livro “A Metafísica” [4] Aristóteles. Metafísica. Tradutor: Giovanni Reale/ Marcelo Perini. Página 8. São Paulo. Edições Loyola. 2002 , explica que todo ser tende ao conhecimento. A imaginação é a segunda fase da atitude de conhecer. Na arquitetura, o cultivo da imaginação fica por conta dos detalhes, no mais das vezes, da beleza que a arte sacra registra. Por meio desse contato, quem está ali dentro consegue educar o imaginário. A arte sacra é, então, uma auxiliar daquele – é um meio de comunicação da Verdade, caso a Verdade ande ao lado da beleza e da bondade. Como comunicar a Verdade, o Logos, sem o aparato da beleza artística? Comunicar a religião sem esse intermediário importa tirar a imaginação do fiel e, por conseguinte, amputar-lhe o segundo passo da aquisição de conhecimento.
Erwin Panofsky, em sua obra “A evolução do conceito de belo”, diz que a manifestação da beleza nos leva imediatamente à percepção de uma presença imediatamente superior: “a beleza visível representa apenas o reflexo de uma beleza invisível, sendo essa por sua vez apenas o reflexo da absoluta beleza“. [5] PANOFSKY; Erwin. A evolução do conceito de belo. Tradução: Paulo Neves. Pagina 36. São Paulo. WMF Martins Fontes. 2013. A arte sacra, portanto seguindo os conceitos transcendentais, sendo bela, acaba representando, e elevando, a beleza invisível e eterna; deixa de ser apenas materiais de alvenaria, reunidos para levantar um edifício, para se tornar o reflexo do transcendente.
A arquitetura sacra torna-se, por assim dizer, uma tradução visível da beleza divina – pela qual os fiéis se aproximam de Deus. “Essa beleza visível é apenas um débil parábola da invisível beleza; e a admiração perante as formas singulares do belo que o artista trazia em sua alma, antes de torna-las visíveis em sua obra, como mediador entre Deus e o mundo material; essa admiração é transcendida em Agostinho como adoração da imensa Beleza“. [6] PANOFSKY; Erwin. A evolução do conceito de belo. Tradução: Paulo Neves. Pagina 36. São Paulo. WMF Martins Fontes. 2013. No entanto, no contexto utilitário, a função vem antes de tudo, e a forma é praticamente abandonada. Tolstói diz que: “na arquitetura, podemos objetar, existem edifícios simples que não são obras de arte e edifícios que alegam ser obras de arte, mas são impróprios, feios e, portanto, não podem ser considerados como tal“. [7] TOLSTÓI; Leon. O que é arte? Tradução: Bete Torii.Página 35. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2019
Há, por exemplo, espaços que se acomodam e não trazem beleza, como: bancos soldados ao chão, paredes brancas para apresentação de slides, ou a praticidade da segurança e da tecnologia. Em prol do conforto, suprimem-se as cores, os ornamentos e os símbolos cristãos que muitíssimo transcendem o mero espaço funcional. As chagas da arquitetura moderna, porém, tomaram conta do imaginário dos arquitetos – tirando-lhes a possibilidade de compreensão do que seria realmente uma arquitetura sacra. Com o imaginário poluído pela arquitetura moderna, acabou-se confundindo “função” com mero utilitarismo – restringindo suas criações a um verdadeiro fetiche.
Desde a Escola Bauhaus, a regra central do design é: a forma segue a função. Assim, os designers, e os arquitetos, entendem como “função” a mera necessidade utilitária de suas criações. Caso tivéssemos uma interpretação mais metafísica (das funções de cada objeto), toda criação humana seria muito mais bonita. Quando esta concepção atinge a Igreja, basta que ela simplesmente seja grande, para comportar o máximo de fiéis possível, ou que, nos melhores casos, acabe representando os símbolos secundários do cristianismo – tal como as projetadas por Niemeyer. Este, aclamado por muitos, não relacionava sua arquitetura com a Beleza e o transcendente. A Igrejinha de Fátima em Brasília [8]Projetada por Niemeyer igrejinha de Fátima comemora 60 anos. Acesso em 20/11/2020. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/projetada-por-niemeyer-igrejinha-de-fatima- … Continue reading , que o tem formato de um chapéu de freira, e a Igreja Cristo Rei, que arrecada cada vez mais dinheiro para a Arquidiocese de Belo Horizonte, não possuem nenhuma relação com a Beleza e com o Transcendente.
Outros exemplos são a Capela, construída no interior da Alemanha, em homenagem a Bruder Klauso, santo padroeiro dos agricultores, projetada pelo arquiteto suíço Peter Zumthor – que por fora lembra uma torre com cinco pontas, uma espécie de pentágono, e, por dentro, uma oca indígena -, e a Igreja Cristã do Norte, localizada em Indiana nos Estados Unidos, projetada pelo arquiteto Eero Saarinen – que consiste num hexágono com pilares em cada canto convergindo para o topo do telhado. O próprio Eero Saarinen diz: “A própria igreja se tornou uma coisinha insignificante e quase esquecida“. [9] Igrejas pelo mundo para qualquer apaixonado por arquitetura visitar. Acesso em 20/11/2020. Disponível em:https://www.todeschini.com.br/blog/8-igrejas-modernas-pelo-mundo-para-qualquer- … Continue reading
É possível notar a obsessão desses arquitetos com as formas geométricas – preocupação que afoga a beleza e a transcendência. Sem a densidade e o efeito pedagógico da arte, é muito difícil que um fiel entre em contato com tudo o que acontece na cerimônia religiosa. É que submeter-se à arte é um modo de encontro com o Divino, de o entender, e de o deixar entrar em seus corações e em suas almas. A Arte, a Arte genuína, é o motor de todo esse movimento interior. A arte sacra, a arquitetura gótica, e a arquitetura barroca – oriundas do cristianismo -, fazem com que se tenha a experiência da beleza dentro de suas construções, o que é impossível com a arquitetura modernista. É preciso, então, não que copiemos esses modelos antigos, tal como surgiram no passado, mas que nos inspiremos neles – a fim de voltarmos a fazer grandes catedrais e belas igrejas, construções que levem os fiéis ao encontro do transcendente.
Ainda há salvação:
Existe um movimento interessado na renovação da arquitetura sacra nos Estados Unidos. Alguns arquitetos, e alguns designers, estão reconstruindo as igrejas americanas – usando a estrutura da arquitetura moderna, mas, por outro lado, reavivando os princípios fundamentais da arquitetura sacra: verticalidade, direcionalidade, iconografia, ordem geométrica e durabilidade. O famoso arquiteto Ducan Stroik é o grande responsável por esse movimento e diz: “Espero que sirvamos à Igreja e, em nossa pequena forma, ajudemos os fiéis à aproximarem-se ainda mais de Cristo através destes edifícios“. [10]É necessário investir na arquitetura sacra tradicional, diz famoso arquiteto americano. Acesso em 15/12/2020. Disponível em: https://gaudiumpress.org/content/102189-e-necessario-investir- … Continue reading
Portanto, é por esse caminho que devemos seguir: o das pessoas reais que se juntam em nome da beleza do cristianismo, e que desejam trazer de volta a experiência superior dos espaços sagrados, com seus símbolos que conversam com as almas.
References
↑1 | Carta aos artistas. Papa São João Paulo II. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul- ii/pt/letters/1999/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists.html |
---|---|
↑2 | Apeirokalia. Acesso em 21/11/2020 Disponível em: http://old.olavodecarvalho.org/livros/apeirokalia.htm |
↑3 | Op.cit |
↑4 | Aristóteles. Metafísica. Tradutor: Giovanni Reale/ Marcelo Perini. Página 8. São Paulo. Edições Loyola. 2002 |
↑5 | PANOFSKY; Erwin. A evolução do conceito de belo. Tradução: Paulo Neves. Pagina 36. São Paulo. WMF Martins Fontes. 2013. |
↑6 | PANOFSKY; Erwin. A evolução do conceito de belo. Tradução: Paulo Neves. Pagina 36. São Paulo. WMF Martins Fontes. 2013. |
↑7 | TOLSTÓI; Leon. O que é arte? Tradução: Bete Torii.Página 35. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2019 |
↑8 | Projetada por Niemeyer igrejinha de Fátima comemora 60 anos. Acesso em 20/11/2020. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/projetada-por-niemeyer-igrejinha-de-fatima- comemora-60-anos |
↑9 | Igrejas pelo mundo para qualquer apaixonado por arquitetura visitar. Acesso em 20/11/2020. Disponível em:https://www.todeschini.com.br/blog/8-igrejas-modernas-pelo-mundo-para-qualquer- apaixonado-por-arquitetura-visitar/ |
↑10 | É necessário investir na arquitetura sacra tradicional, diz famoso arquiteto americano. Acesso em 15/12/2020. Disponível em: https://gaudiumpress.org/content/102189-e-necessario-investir- na-arquitetura-sacra-tradicional-diz-famoso-arquiteto-americano/ |