Caro leitor, vimos que a semiótica [1] Disponível em: https://jornalcidadaniapopular.com.br/uma-introducao-a-semiotica-parte-i/ consiste basicamente em um conjunto de técnicas de auxílio à leitura – podendo ajudar desde o que está explicitamente exposto até o que está implícito. Por isso, sua utilização na mídia é bastante intensa, principalmente nos campos da publicidade e do jornalismo. No entanto, para os fins a que nos propomos, há claramente uma semelhança entre certos aspectos da semiótica (criada por Greimas) e a filosofia de Louis Lavelle. Este texto é uma espécie de demonstração de onde provêm essas semelhanças entre os dois autores. Com isso, estamos escrevendo sobre semiótica e, ao mesmo tempo, dando-lhe uma base filosófica – de maneira a colocar a nossa existência no mundo como prioritária sobre os dados que serão analisados.
Já de antemão, um aviso torna-se necessário O texto a seguir tem apenas três fontes principais; elas estão em um estado de dispersão tão grande que acreditamos melhor serem dadas no início deste texto; são elas: as aulas sobre Louis Lavelle do COF, da 184 a 192, o primeiro capítulo do livro de Diana Luz Pessoa de Barros, “TEORIA SEMIÓTICA DO TEXTO”, a partir do qual realizaremos toda uma “lavellianização”, e o livro de Olavo de Carvalho, “Introdução à Filosofia de Louis Lavelle”. Embora essas sejam as principais fontes, também utilizaremos alguns textos do próprio Lavelle.
A PRESENÇA DO SER E A NOÇÃO DE TEXTO
Lavelle escreve que “há uma experiência inicial”; sem ela, nenhuma outra experiência possui sentido, pois é somente através dela que podemos reconhecer a profundidade e a intensidade que qualquer outra experiência possui. A essa experiência primordial foi dado o nome de presença do ser. “Reconhecer esta presença, é reconhecer ao mesmo tempo a participação do eu no ser.” [2] A Presença Total. Covilhã, 2008. Tradutor: Américo Pereira. Pág. 17 Sabemos que nossa consciência existe, mas ela precisa de algo externo para que possa compreender e apreender. Assim, por esse ato, ela pode existir. Para além de nós, e do ato do espírito, está o dado, as coisas que estão aí – porque não foram criadas por nós, mas pelo conhecimento de que existimos em um mundo, que não é de nossa criação, mas do qual precisamos para ativar o ato da nossa consciência, e de nossa memória. Sabemos que estamos dentro de algo; podemos chamar este algo de ser – que nos cerca, sustenta nosso ato de simplesmente pensar.
Um texto, para ser objeto de estudo da semiótica, deve conter duas características fundamentais: deve dizer algo, e precisa e dizê-lo de uma certa maneira. Em outras palavras, um texto, para a semiótica, deve conter significado interno, como também deve conseguir comunicar algo entre dois sujeitos. Descartes visava encontrar a base para a existência do mundo externo. De fato, as suas análises contém tantos erros, observados por inúmeros autores do século XX, que ele terminou por criar uma prisão – da qual não há escapatória. Assim, só lhe restou a opção de recorrer à salvação de um Deus benevolente, a quem Olavo de Carvalho diz ser um deus “ex machina“, pois não participou da filosofia que se construía até então.
Quando unimos Greimas a Lavelle, vemos que, através da definição de texto, temos uma saída do mundo subjetivo de Descartes, sem a necessidade da utilização do deus “ex machina“. Os dados do mundo transmitem significado, pois eles são objetos de significação. Os textos, porque conseguem ser entendidos, nos transmitem o seu significado. Isso só é possível devido ao ser – que envolve ambos. Através dessa noção de texto, posso “reconhecer a participação do eu no ser”. Posso reconhecer haver necessidade de algo anterior ao sujeito e ao objeto – algo pelo qual o sentido se realiza e flui -; é o que Lavelle chama ser. O algo que flui, de um objeto para um sujeito, é o texto, porque consegue ter sentido – e este tem a faculdade de ser transmitido, apenas quando apreendido por um ato de consciência. Pela dualidade, que compõe o texto para a semiótica, diversos problemas surgem.
O primeiro problema advém daqueles que defendem que o texto deve ser estudado apenas como objeto de sentido, ou como objeto de comunicação. Sem querer entrar em discussões tão profundas, notamos que em Lavelle esse conflito é facilmente resolvido. No Ser, tudo o que há, existe nele como possibilidade interna. Dentro desse todo inabarcável, surge algo que só pode vir a existência como ato – este, dentro de suas limitações, consegue entender aquilo que o cerca. Caso não haja um dado não existirá consciência, e, portanto, memória. Logo, a resolução do problema semiótico é de ser impossível estudar o dado apenas como objeto de significação, ou de comunicação isoladamente – pois haverá sempre a mente que aprende o dado, e este sempre conseguirá transmitir informações. Um não consegue existir sem o outro.
A nossa consciência não existe como coisa, ela só existe como ato. Este ato se destina a entender o dado – que tem tanto sentido interno como possibilidade de transmissão do seu sentido. Para isso, é necessário haver um ato capaz de o inteligir: que é a nossa consciência. Como vimos, ela depende de um dado, algo que está para além dela, para poder existir – pois, a consciência somente existe como ato. A consciência depende do dado; ela existe na apreensão mesmo de um dado existente, ou seja: não existe o ato da consciência sem um dado que consiga transmitir sentido – por meio da significação. Assim, dentro da filosofia lavelliana, fica impossibilitada qualquer tentativa de análise de um objeto textual apenas por um de seus vieses – o de seu significado interno ou de sua possibilidade de comunicação -, pois deve haver em ambos o ato da mente, que buscará o entender e comunicar a significação. Outro problema, que encontramos na noção de texto semiótico, é como deve ser entendido a explicitação do texto. Isso é resolvido a partir das manifestações culturais produzidas pelo homem – que podem ser abstraídas pelo eu que as percebe, e que contém significados próprios. Esses significados agem dentro de um plano de conteúdo, ou seja: dentro de todo o Ser. A semiótica escolhe, como seu objeto de estudo, um recorte do Ser – o plano onde ocorre a transição de significados.
O PERCURSO GERATIVO DO SENTIDO E A FILOSOFIA DE LOUIS LAVELLE
No Plano de conteúdo, a semiótica aplica o percurso gerador de sentido, ou seja: como é que no Plano se constrói o sentido. Nada mais óbvio do que analisar, e separar por partes, como ocorre essa produção. As regras que são necessárias para entender o funcionamento das três fases do PGS serão dadas na parte II de nosso artigo sobre a semiótica. Por isso, vamos aqui dar apenas algumas considerações, de maneira a explicitar a forma como a geração de sentido ocorre dentro do texto. Todo texto possui estruturas fundamentais – de onde se originam o seu sentido. Podemos criar uma história que fale da liberdade; esse valor pode ser antagonizado pela dominação, que, por sua vez, pode aparecer como exploração e opressão.
Esses valores podem se manifestar como no anime Black Clover, onde Asta, que nasce sem magia, é visto como alguém sem futuro. Neste exemplo, podemos ver a ideia da opressão – que é demonstrada através das atitudes de certos personagens, ao perceberem a condição de Asta. Porém, o personagem, sendo determinado, consegue lutar contra isso, e descobre, em suas suas espadas anti-magia, uma forma poderosa de lutar – revelando nisso o valor da liberdade. Todo texto possui valores positivos e negativos de alguma forma, pois é sobre eles que a história e as ações dos personagens vão se estruturar. As categorias fundamentais são chamadas positivas ou eufóricas, negativas ou disfóricas. Em Black Clover, o fato de Asta ter nascido sem magia, é considerada disfórica, porém as suas habilidades são consideradas eufóricas.
Entre a disforia e a euforia, há uma passagem e uma mudança dos valores. Podemos comparar, de forma análoga, a passagem da potência ao ato. Na Escolástica Medieval, ela era articulada com um meio termo. Para aplicar essa visão, podemos usar um exemplo dado por Olavo de Carvalho: toda mulher possui a potência para gerar filhos; o ato primeiro ocorre quando ela engravida; o ato segundo quando dá à luz ao seu filho; e o ato de ser mãe se concretiza quando ela se torna efetivamente mãe. De forma similar, a passagem da disforia para a euforia passa por um meio termo, a não-disforia. Então, podemos dizer que Asta passa pela fase disfórica quando é maltratado por não ter magia; já a não-disfórica quando descobre a sua espada, passando assim a treinar com o objetivo de entrar para os Cavaleiros Mágicos; e, finalmente, eufórica, quando o Capitão dos Cavaleiros Mágicos Yami o aceita como recruta. O início de Black Clover, portanto, tem um conteúdo mínimo fundamental: a negação – por parte de Asta de ser considerado fraco, ao ter nascido sem magia – dentro da história é sentida como negativa; já a determinação para se tornar cavaleiro mágico é tida como eufórica, afirmativa.
Podemos associar essa breve demonstração, do nível fundamental do PGS, a uma das teses fundamentais de Louis Lavelle: a de que toda a existência é subjetividade. Segundo Carvalho, isso não significa dizer que essa subjetividade seja minha, mas sim que o mundo existe – como que possuído por uma interioridade -, e não apenas como algo que é exibido a alguém. Esse é o motivo de que a penetração na minha subjetividade permite-me o acesso à subjetividade das coisas, ou seja: a subjetividade do objeto, logo, ao seu sentido. Caso captássemos apenas a objetividade dos objetos, eles, em si mesmos, não possuiriam sentido algum. Dessa forma, o sentido é uma subjetividade. O que chamamos objetividade é a subjetividade do próprio ser. Carvalho chama novamente a atenção para um fato interessante. O primeiro trabalho de Lavelle é a dialética do mundo sensível, um trabalho inteiramente centrado no mundo sensível – visando descrever dados sensíveis. Já o seu último livro é o tratado sobre valores.
A descoberta de Lavelle, demonstrada nesse meio termo, é não haver conhecimento da realidade sem uma referência ou origem moral. Assim, as definições de euforia e disforia podem ser entendidas como manifestações de valores – que possuem origens morais. Ou seja: quem percebe se determinadas estruturas fundamentais são positivas ou negativas é a pessoa que lê o texto – e que, por estar fora do texto, pode ter um julgamento mais confiável, mas que não deixa de ser uma suposição baseada em um ato moral. Em outras palavras, qualquer descrição da realidade envolve atos morais – razão pela qual a classificação de valores das estruturas fundamentais se torna possível. O nível fundamental, exibido dessa forma, é o entendimento da objetividade de um texto – tendo como base a subjetividade desse mesmo texto. Tal análise do nível fundamental é apenas possível por causa daquilo que Lavelle chama sujeito absoluto – que encontra, tornando possível tanto a possibilidade de análise da subjetividade do objeto, como a sua reflexão.
References
↑1 | Disponível em: https://jornalcidadaniapopular.com.br/uma-introducao-a-semiotica-parte-i/ |
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↑2 | A Presença Total. Covilhã, 2008. Tradutor: Américo Pereira. Pág. 17 |