Ao leitor deste trabalho, desde já, meu muito obrigado pela paciência. Eis que este ensaio, preparado em breve tempo, não o foi por menor estudo ou esforço às pressas, mas, antes, é uma síntese singela de experiências tão diversas que, unidas num só nó – como um rio que se alimenta de tantas nascentes quanto a visão dos apreciadores pode dar conta -, perfazem um tecido de ideias, tal como deve ser um ensaio. Neste trabalho, o seu autor pusera-se a prova, submetendo-se ao escarmento da depuração dos fatos e ideias.
A primeira parte deste ensaio é introdutória, e, do ponto de vista do seu autor, de suma importância para a compreensão do que se seguirá. Tal como um rio que flui e faz curvas, perdendo-se no horizonte, o leitor pode ter a impressão sinuosa de se perder. O único conselho dado será este: não tenha pressa de subir a montanha e nem de chegar à foz do rio. No fim da leitura, poderia se perguntar o que levou o autor a escrever de modo afoito, já que tange a assuntos tão delicados e polêmicos.
A resposta: a urgência de, em meio ao turbilhão caótico das ideias inconexas e espalhafatosas, manter firme a inteligência. Isso quer dizer: manter-se no centro das ideias sem ser arrastado pelas forças contrárias da inteligência humana – ou, tal como diria Jean Guitton, “Um verdadeiro livro escreve-se por necessidade, tal como uma verdadeira leitura é a que fazemos num estado de espírito de fome e desejo“.
1§ Senso Comum x Histeria Coletiva
O sentido último do conhecimento filosófico não é tanto solucionar enigmas quanto descobrir maravilhas”
– Johannes Hessen
Senso é uma palavra que remete ao sentido apreendido de algo; é a base para a intuição do pensamento humano, e está presente, de maneira natural, em todos os seres humanos – ainda que possa e deva ser aperfeiçoada com o tempo. [1]Intuição, ensina Olavo de Carvalho, é a capacidade de perceber uma evidência, distinguindo-se, assim, do raciocínio. “Você usa o raciocínio lógico para conhecer algo que não está … Continue reading Mas o senso não pode ser uma mera opinião comum a que todos, ou maioria, podem estar, ou não, cordatos entre si. Senso deve ser a capacidade normal da inteligência humana em captar os dados da experiência – perante a realidade compartilhada por todos os homens – , e, deste modo, poder enxergar aquilo que todos podem ver e sentir.
Em suma: senso é o poder de evidenciar a si mesmo, e ao seu semelhante, a evidência transposta para todos os sentidos humanos, e destes para o senso da mente – e não só, como se supunha o termo evidência, a visão. [2]Evidência, ensina também Olavo de Carvalho, é a condição prévia para o conhecimento da verdadeira ciência. Tornar-se ciente de algo, que se vê para fora e por fora, é a definição mesma de … Continue reading É verdade que senso e evidência são termos que implicam a capacidade de perceber o óbvio, mas eles mesmos são usados no sentido figurado, na medida na qual não é a visão que vê, nem os sentidos que sentem, mas é a própria inteligência que capta, por meio deles, a evidência e o senso de alguma coisa. [3]O Conhecimento por Presença é o ato de conhecimento pela inteligência do fato concreto. “A Ciência da Percepção do Objeto – de sua presença, de sua apreensão e intuição do fato … Continue reading
Transposto à inteligência o que se vê e sente, percepciona-se – na inteligência, pela inteligência, com a inteligência, para a inteligência – o sentido de algo. Isto é o que se chama “o bem do intelecto”, cunhado por Santo Tomás de Aquino para afirmar esta relação entre o conhecedor, o conhecimento e o conhecido, assim como para referenciar a tripla relação de Sujeito↔Conhecimento↔Objeto, de Johannes Hessen. É a partir desta tripla relação que o homem trabalha tensionalmente no seu desenvolvimento do senso de realidade, donde advém, por antonomásia, a realidade do que seja senso comum.
O que é o homem perante a realidade? O homem é a outra consciência da realidade; é a outra testemunha do mundo inteligível; é a outra voz do conhecimento da realidade. Mas toda vez que o homem precisa se abster de usar a própria inteligência para se adaptar à linguagem comum, e vice-versa, temos aí a disparidade entre o real e o abstrato – é a famosa tensão da linguagem, e o segundo ganha primazia perante o primeiro, ou seja: já não é mais a verdade que se sobressai, mas a impressão que o ajuntamento das palavras e ideias fazem.
A conexão com a realidade é um processo posterior da consciência humana, tanto de quem fala, como, sobretudo, de quem ouve. Isto ocorre porque as palavras possuem realidade por si mesmas – este é o poderoso efeito da palavra, e isto nos faz entender porque São João Evangelista começa dizendo que “No princípio, era a Palavra… e a Palavra se fez carne e habitou entre nós…”. Toda palavra possui o seu próprio poder criativo, e sempre age na realidade, pois que também a palavra é um ente em si.
Mas que raio de coisa se está a dizer quando se fala que uma palavra não possui respaldo na realidade? Isto quer dizer que ela não possui respaldo na realidade existente no tempo – passado, presente e futuro – das coisas das quais estão a se referir. Quando uma pessoa não sabe usar as palavras para descrever a realidade daquilo que existe, existiu ou existirá, ela está presa num pensamento viciado, porque ela vive num mundo dela, que é real, mas que só é real na cabeça dela – e que sobre ela age com o efeito devastador de uma segunda realidade. Esta situação é a perda do senso do objeto real e, é redundância dizer, do senso da realidade.
Antes, é preciso dizer que senso da realidade não é o mesmo que enxergar algo em sua plenitude, nem compreendê-lo em toda a sua complexidade. Mas não podemos reduzir o conhecimento humano a uma simples apreensão do mundo sensível [4]O conhecimento do mundo sensível diz respeito ao que se apreende pelos sentidos, dos quais inclui os físicos e o imaginativo, imaginatio, segundo o conceito de Hugo de São Vítor. Mas eles são … Continue reading , porque isto seria supor um mundo mais ideal do que o mundo das puras ideias – já que realidades puramente idealísticas comandam o homem no dia a dia, sem prejuízo de que viva na realidade do mundo sensível; ou também poderia supor que o homem não soubesse nada da realidade do mundo sensível – e, assim, não pudesse agir e sobreviver em dado contexto.
Por exemplo: quando saímos de casa para a rua, supomos que a rua está lá, e que ela não deixou de ser o que era um só momento, em nada. Nenhum ser humano comum questiona isto, porque pressupõe que o mundo está lá exatamente como ele imagina, sem se ater que já não é o mundo que o está dizendo isto, mas a sua memória – a qual está virtualizando um objeto e dando uma estabilidade do ser, que pode ser real ou não. Mas em quê está a garantia disto? Está na rua ou na nossa memória?
A expectativa de uma situação tem maior peso no homem do que a própria realidade em si mesma, e o homem conta com ela conscientemente, mas sem se ater que a base, no qual ele se apoia, é muito tênue. Outro exemplo mais virtualizado: suponhamos um homem nascido no Império Hitita em 1500 a.C. Ele pensa que a sua nação é tão eterna quanto o brasileiro pensa que a sua nação é eterna, ou quanto o romano pensava que era eterna a sua nação. Mas os heteus desapareceram, dos romanos só ouvimos falar, e do Brasil ainda presenciamos a sua existência aparentemente intrépida.
O que faz um povo supor que seu país sempre esteve lá e que sempre existirá? A falta de percepção histórica. E onde estaria a percepção histórica do início e fim das nações? Não está em lugar algum, ela subsiste espiritualmente, como realidade passada que é tornada presente em meros vestígios, encontrados por alguns homens – cujos interesses também não estão na importância temporal deste dado, porque saber o que foi o Império Hitita não está na essência do existir de nenhum ser humano atual. [5]Não é importante, para a existência de nenhum ser humano hoje, saber da existência do Império Hitita. Isto não quer dizer que a existência do Império Hitita não tenha importância alguma, … Continue reading
Homens e mentes, doutros tempos e lugares, subsistem apenas na sombra da nova imaginação humana, como poeira de lembranças do que nunca foram efetivamente, mas que existiram de algum modo – sendo recriados pela imaginação atual, porque são por elas referenciadas. No entanto, se alguém investigar a história, poderá notar esta verdade, á qual não está evidente para todos, para o senso comum, mas que está evidente na realidade objetiva além das consciências individuais.
O que chamamos de fatos históricos, portanto, são vestígios do passado que existiram efetivamente, mas que não estão mais lá. A história passada está no passado, não obstante, ela existe porque nunca deixou de existir, porque nunca deixou de ter seu lugar na história, e como diz um ensinamento chinês: sem o passado, não haveria o hoje, pois este é em decorrência daquele. Outro exemplo problemático: dos vestígios históricos, alguém deseja saber se Cristo realmente existiu ou não, e se ele disse o que disse ou não.
Ele, no entanto, não quer recorrer às testemunhas ditas cristãs, porque não considera os testemunhos cristãos válidos para provar a existência de Cristo. Em seu argumento, Cristo é uma invenção da Igreja Católica criada pelo Império Romano para conquistar mais soldados na batalha, com a promessa da ressurreição. Cristo seria uma cópia fajuta do messianismo hebreu. Assim, ele reduziu ao mínimo as chances de encontrar vestígios da existência do Jesus Cristo histórico que corresponda ao evangélico.
A quem ele recorrerá? Onde estão os vestígios que procura? Boa parte deles, estão no tempo e lugar, espalhados e inomináveis no horizonte de dois mil anos. O nosso investigador inviabilizou, para si, a própria matéria de pesquisa, donde ele nunca encontrará respostas, porque ele não pode ir para um tempo que não é o dele. Só dele tomar a Sucessão Apostólica, logo chegará aos Doze Apóstolos que, por sua vez, chegarão a Cristo. O Cristo histórico e o evangélico tornam-se – neste simples caminho, mas árduo por percorrer – num só, impossível de se separar, porque um é a razão do outro.
Donde se diz, “se fizerdes minha vontade, sereis meus amigos… e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e nas nações pagãs…”. O que é ser testemunha? Testemunha é participar da realidade referida. Se eu vejo um filme, sou testemunha daquele filme. Se vejo um homem que mata o outro, sou testemunha de sua ação. De Cristo, ele dá uma pista para se descobrir se ele existe ou não: “fazer o que ele pede, porque assim será amigo, saberá o que ele diz e quer, ele se revelará e far-se-á por ser reconhecido…”, e é por isto, entre outras razões, que se diz, “a tua fé te salvou…”.
Em todos os exemplos citados, a testemunha é a protagonista. O passante é testemunha da rua; o nacionalista é testemunha de seu país – bem como o historiador o é de sua ruína; o cristão é testemunha de Jesus, porque é testemunha de que sua palavra funciona. Mas, em tudo isto, a realidade do que é testemunhado não está presente do mesmo modo, mas sim como uma existência perene noutro tempo – para além do tempo e no tempo -, quer dizer: está em algum tempo que existiu, mas não está no tempo; está na memória, mas não de um homem, e sim do que existiu.
Assim, “vemos” o que não vimos, subsistimos no que ignoramos, “vivemos” no que não vivemos, e queremos ser o que não somos ou jamais fomos. Consequentemente, o homem vive num tempo além do tempo e, mesmo ignorando tudo o que existe ou existiu, subsiste nele como consequência e vontade. Isto é o que, em resumo, podemos chamar de realidade: a totalidade do que existe por causa e consequência. Porém, o homem pode acessar essa realidade de algum modo, conscientemente ou não – podendo expressá-la por meio de uma linguagem que, não obstante, é sempre consciente.
References
↑1 | Intuição, ensina Olavo de Carvalho, é a capacidade de perceber uma evidência, distinguindo-se, assim, do raciocínio. “Você usa o raciocínio lógico para conhecer algo que não está evidente, cuja veracidade depende da admissão de uma verdade anterior”. Ver: Aula bônus sobre Ciência e Falsa Ciência. |
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↑2 | Evidência, ensina também Olavo de Carvalho, é a condição prévia para o conhecimento da verdadeira ciência. Tornar-se ciente de algo, que se vê para fora e por fora, é a definição mesma de evidência: estado presente de quem vê o que se apresenta diante de si. Olavo crítica, e com razão, o desnivelamento que o termo evidência perdeu no próprio senso comum brasileiro, ao qual atraiu para si o conceito de evidence, do inglês – palavra que quer dizer vestígio, indício de algo, prova, precisamente distante do que é em português, herdeiro direto do latim, em que o próprio termo se explica. Trata-se, então, de termo com sentido próprio: evidenciar algo é mostrá-lo para fora perante o sujeito que vê. Portanto, evidência aqui é usada neste sentido: um dado propositivo que se impõe à intuição humana. |
↑3 | O Conhecimento por Presença é o ato de conhecimento pela inteligência do fato concreto. “A Ciência da Percepção do Objeto – de sua presença, de sua apreensão e intuição do fato concreto – é a maior ciência humana, só que ela não sabe conscientemente disto. A ciência da percepção começa com a aceitação do objeto que se impõe para a consciência inteligente, e como tal, oferece as bases para a construção do conhecimento: percepção dos sentidos↔conceito↔categoria↔senso de temporalidade e espacialidade↔ato da percepção do fato concreto: presença, apreensão, intuição. Esta operação é, em grande parte, conatural com a inteligência humana e sua construção lógica, mas não é infalível, exige-se dela sempre um esforço de centralização deste conhecimento no centro evidente e silogístico de sua autoafirmação, quer dizer: a inteligência humana recorre aos métodos lógicos de precisão para manter a centralidade da percepção do objeto, é deste ponto que nasce todo método científico”. Ver: Aula 53 COF. |
↑4 | O conhecimento do mundo sensível diz respeito ao que se apreende pelos sentidos, dos quais inclui os físicos e o imaginativo, imaginatio, segundo o conceito de Hugo de São Vítor. Mas eles são apenas um espectro desta compreensão da realidade. Todo o conhecimento humano pressupõe que os seres concretos estão categorizados ou são categorizáveis em espécies e gêneros. A filosofia se propõe a realizar esta categorização com método apropriado, porque é a única que lida com objeto real individual e universal, compreendendo todo o espectro de sua extensão no ser – sendo, assim, o oposto mesmo da ciência, a qual se propõe a expor um método eficiente predicado do objeto. A filosofia diz o objeto, a ciência fala sobre o objeto. Dizer algo é mais do que dizer sobre. |
↑5 | Não é importante, para a existência de nenhum ser humano hoje, saber da existência do Império Hitita. Isto não quer dizer que a existência do Império Hitita não tenha importância alguma, até porque pode haver muitos seres humanos que são descendentes dos hititas – e, como tais, a existência desta raça no passado foi, e é, vital, sobressalente. |