O presente ensaio não pretende ser uma interpretação do pensamento de Nietzsche, mas, partindo dele, iluminar algumas questões da vida humana real. É muito comum a má interpretação do conceito nietzschiano da vontade de poder; portanto, começarei por tentar defini-lo, não com uma propositiva universal, mas com um exercício mental. Pois bem, caro leitor, faça o seguinte exercício imaginativo: elimine todo impulso moral, empatia, compaixão ou amor; elimine todo princípio ético racional, elimine a razão mesma. O que resta, lá no fundo, como uma chama ardente desejosa de se propagar, é a afirmação da vida, a vontade de poder, de ir além, de consumir, tomar e dominar.
É o princípio e fim de nossa humanidade, “ser pessoa é poder ser mais” [1] Marías, 2021, Mapa do Mundo Pessoal, p. 144 , é poder evoluir e crescer rumo à perfeição inalcançável. A vontade de poder é a vontade de viver – já que a vida sempre tende para a expansão, para o crescimento e ampliação. Por isso, a caridade é a virtude relativa à vontade, pois ela é o resultado do esforço máximo da vontade de sair de si mesmo e ir totalmente para o outro, para o não-eu. No lado oposto ao ímpeto expansivo, está a realidade, com suas facetas múltiplas, que nos favorece, mas também resiste às nossas ações. É neste confronto dialético e tensional que se dá a vida humana, nos seus mais variados tons e cores, luzes e trevas, harmonias e dissabores.
Há, nessa realidade, caracteres de particular importância: outras personalidades humanas que, por serem parecidas conosco, nos revelam algo de nós mesmos – algo do que é ser humano que compartilhamos e algo de propriamente único que possuímos. A personalidade individual, em razão da semelhança, revela-se como o maior fator de influência em outras personalidades – ela é o fator mais poderoso que existe no mundo humano, é a origem e o fim de todas as ações. Como todas as tendências humanas, o ímpeto expansivo também pode ser corrompido e subvertido. A recusa de algo essencial só pode ter por consequência fatos catastróficos, que logo se revelam: a negação da vontade de poder é a negação da vida mesma. O espírito burguês, aquele que busca a segurança e conforto, é a antinomia do espírito heróico, do übermensch [2]Optei aqui pelo uso do vocábulo original, pois considerei todas as alternativas de traduções insatisfatórias. Para mais detalhes sobre as possíveis traduções do termo cf. Nietzsche, Friedrich, … Continue reading , que se afirma sobre a realidade ao invés de negar-se na comodidade, tanto física quanto espiritual, aceitando qualquer malefício em troca disso. [3]Além das óbvias consequências físicas que a busca por comodidade pode trazer e de seus aproveitamentos políticos, ela causa algo ainda pior: o definhamento total da inteligência. Cf. “O … Continue reading
Essa forma de vida está fadada ao fracasso e à decadência, como bem expressou Nietzsche: “Ó amantes do bem-estar: é tomado, e cada vez mais será tomado de vós! Mas a hora deles está chegando! E também a minha chega! A cada hora eles se tornam menores, mais pobres, mais infecundos”. [4] Nietzsche, op. cit. p. 149 O ciclo de decadência é autofágico e caótico, mas também anestesiante e suas consequências passam quase sempre despercebidas por suas vítimas que, imaginando avançar, não fazem senão destruir a si e aos outros – num ciclo de destruição mútua falsamente chamado de virtude: “virtude é o que torna modesto e manso… mediocridade: embora se chame comedimento” [5]op. cit. p. 147 , não distinguem a mediania virtuosa do medo e mascaram por prudência a inveja incapaz.
1§ Do Poder
References
↑1 | Marías, 2021, Mapa do Mundo Pessoal, p. 144 |
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↑2 | Optei aqui pelo uso do vocábulo original, pois considerei todas as alternativas de traduções insatisfatórias. Para mais detalhes sobre as possíveis traduções do termo cf. Nietzsche, Friedrich, Assim Falou Zaratustra, Editora Companhia das Letras, n. 6 |
↑3 | Além das óbvias consequências físicas que a busca por comodidade pode trazer e de seus aproveitamentos políticos, ela causa algo ainda pior: o definhamento total da inteligência. Cf. “O Estado de Dúvida” in Carvalho, Olavo de, Inteligência e Verdade, 2021, p. 34 |
↑4 | Nietzsche, op. cit. p. 149 |
↑5 | op. cit. p. 147 |