Fé não é crença, uma ideia vagamente concebida, como muitos acreditam nos tempos hodiernos, pois, caso assim fosse, seria meramente um movimento subjetivo e, muitas vezes, sentimental, em direção a algo que sequer sabemos se existe ou não. “A fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se veem”. (Hb 11, 1) Como nos diz o apóstolo Paulo, ela é a confiança no Deus onipotente e bom, no Deus que promete a salvação àqueles que o seguem. É a abertura e a confiança neste Deus de amor que, nos abarcando e abrangendo infinitamente, “prova” as realidades que não se veem.
O amor não dá provas empíricas ou argumentos logicamente estruturados – aos quais criam tantos problemas novos quanto resolvem antigos, fato que a longa história de polêmicas e discussões envolvendo o desenvolvimento dos dogmas e da doutrina católica só atesta -, mas, penetrando profundamente no nosso “eu”, responde à vontade e ao movimento mais íntimo e essencialmente humano, aquele ao qual se referiu Santo Agostinho quando disse que: “O homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te. Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso“. [1] Santo Agostinho de Hipona, Confissões, Livro I
Engana-se, no entanto, quem por isso pensa que a abertura para o amor de Deus é respondida meramente com um sentimento, por mais genuíno que seja, ou por um senso de completude, pois isso seria uma resposta incompleta ao homem. Ele responde ao todo do nosso ser, incluindo a parte mais essencialmente humana, isto é, a parte cognitiva ou noética [2] Por noético, refiro-me ao nous grego, à capacidade humana de apreender a ousia, a essência ou quid do ente. , como nos diz ainda o apóstolo: “é pela fé que compreendemos que os mundos foram organizados por uma palavra de Deus. Por isso é que o mundo visível não tem sua origem em coisas manifestas”. (Hb 11, 3). Apenas pela abertura ao Ser nós compreendemos o todo da realidade. [3] A santidade é a expressão máxima da inteligência humana, pois ela exige uma apreensão da realidade total como ela é, dando o valor correto a cada um de seus componentes.
A abertura a Deus deve ser feita pelo ser humano como um todo, e, no processo de viver esta conversão na vida, o homem deve desenvolver as chamadas três virtudes teologais – nas quais, cada uma delas, correspondem à uma potência da alma -, elevando-as do estado natural para o sobrenatural, com a ajuda de Deus. [4] São João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, Livro II, pg. 71, Edição Biblioteca Católica Mesmo tudo isso, no entanto, é inútil se o sujeito ficar meramente no reino das palavras e não as corresponder em sua experiência existencial concreta, íntima e aberta ao real, ao ser e ao mundo que o envolve.
A negação do mundo concreto imediato não é senão uma técnica para sairmos da existência imediata terrena e elevarmo-nos às alturas do ser e do espírito ao qual experienciamos a conexão direta com Deus (método bem desenvolvido pela mística de João da Cruz). Mas isto é apenas meio caminho: é necessário o retorno à realidade concreta e à existência real humana, sem o qual a mística se transforma em escapismo e a revelação em delírio (é bem conhecida a grande ênfase dada à vida cotidiana pelo santo Josemaría Escrivá). Mas isto é apenas meio caminho: é necessário o retorno à realidade concreta e à existência real humana, sem o qual a mística se transforma em escapismo e a revelação em delírio (é bem conhecida a grande ênfase dada à vida cotidiana pelo santo Josemaría Escrivá).
No final das contas, a experiência com Deus ainda é uma experiência, e a noite escura, atravessada pela alma, resulta no contato com a luz divina. A Bíblia e os livros espirituais que tenhamos à mão não passam de guias para atravessar essa jornada chamada vida terrena. As virtudes teologais, para João da Cruz, correspondem às três potências da alma, esvaziando-as de coisas materiais para serem preenchidas por Deus. [5] São João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, Livro II, pg. 68, Edição Biblioteca Católica Mas o que é Deus se não o ser ou o todo em seu sentido mais pleno? “Eu sou aquele que é” (Ex 3, 14) disse o próprio Deus. Ele é tudo [6]Por “Deus é tudo” entendo o fato de que Deus, sendo o próprio ser e existência, bem como o sumo bem, doa, por participação, sua existência e bondade aos entes criados. Tudo existe nele, … Continue reading , ele abarca tudo, seja o mundo físico, sutil, metafísico ou possível, ele é tudo isso e muito mais. Ser preenchido por Deus, é ser preenchido, tanto quanto é possível para nós, pelo todo da realidade e não meramente negar objetos da experiência imediata (ato que mais se aproxima de uma esquizofrenia do que contemplação mística).
Todo o cristianismo é baseado no fato da encarnação, vida e morte de nosso senhor Jesus Cristo – verdadeiramente Deus e homem -, e, se isso não aconteceu, então “se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé”. (1 Co 15, 14) Todo o cristianismo gira em torno disso, a própria oração do Credo é toda sobre fatos que ocorreram – como a vida de Cristo e a criação do mundo por Deus Pai. Não é à toa que Jesus usava parábolas e não deduções lógicas ou tratados filosóficos. Parábolas são estórias, e estórias são narrativas ficcionais sobre personagens agindo em situações concretas.
Por isso, na Páscoa, nós não celebramos uma crença, nós não celebramos uma passagem bíblica ou uma ideia [7] Transformar Deus em um mero conceito abstrato foi uma das grandes catástrofes da filosofia moderna , nós celebramos um fato concreto: a Ressurreição de nosso senhor Jesus Cristo, que, ao mesmo tempo, justifica, redime e coroa toda a criação de Deus e religa o jardim corrompido ao céu almejado. Cristianismo não é uma crença ou uma doutrina logicamente composta, mas é a forma correta de se relacionar com Deus ressuscitado e a realidade que Ele criou – ele é o contraponto humano à iniciativa divina. Cristo é uma pessoa ou não é nada, o cristianismo é um fato ou não é nada.
Aqui, algumas notas sobre equívocos comuns em relação à Bíblia ser-nos-ão oportunas. A Bíblia, como se sabe, foi uma compilação histórica de diversos textos com origens divergentes, mas que foram compostos e unidos por ação humana guiada por Deus. No entanto, em nosso tempo é muito comum a proclamação da primazia da Bíblia sobre a Igreja, tanto entre protestantes como entre católicos, que tentam justificar a instituição através do livro. Ora, mas não fora a Igreja a compilar os textos? Como a instituição depende de um produto seu para sua validação? Como pessoas que não acreditam nela podem acreditar no que ela fez?
Há aí um equívoco de tomar o texto pelo que ele descreve: o evangelho meramente retrata partes de acontecimentos reais, o fato de que Jesus, pessoal real, de carne e osso, ter confiado a Pedro sua Igreja é o fato importante que dá autoridade e legitimidade à instituição e seu livro. O próprio Deus encarnado delegou-lhe a função de pedra basilar e ligação entre o céu e a terra (Mt 16, 18-19). A Igreja é uma tradição criada por Deus.
Tudo que de bom foi feito na história humana, seja a filosofia, as artes ou a ciência, é uma tradição, pois os homens individualmente são enormemente limitados, mas o conjunto deles – começando seus trabalhos de onde os anteriores pararam e passando a tocha adiante – podem alcançar feitos formidáveis. Mas só uma tradição fundada pelo próprio Deus pode alcançar o maior de todos os feitos: a salvação da alma humana. Se entendeu isso, desejo uma santa Quaresma e uma Páscoa de glória, pois a redenção é a maior das vitórias.
Creio que não há forma melhor de homenagear um falecido e de honrar seu trabalho do que levá-lo adiante.
In Memoriam de Olavo de Carvalho.
Requiescat in Pace.
References
↑1 | Santo Agostinho de Hipona, Confissões, Livro I |
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↑2 | Por noético, refiro-me ao nous grego, à capacidade humana de apreender a ousia, a essência ou quid do ente. |
↑3 | A santidade é a expressão máxima da inteligência humana, pois ela exige uma apreensão da realidade total como ela é, dando o valor correto a cada um de seus componentes. |
↑4 | São João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, Livro II, pg. 71, Edição Biblioteca Católica |
↑5 | São João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, Livro II, pg. 68, Edição Biblioteca Católica |
↑6 | Por “Deus é tudo” entendo o fato de que Deus, sendo o próprio ser e existência, bem como o sumo bem, doa, por participação, sua existência e bondade aos entes criados. Tudo existe nele, como nos diz o apóstolo: “pois nele vivemos, nos movemos e existimos…” (At 17,28). Correndo o risco de ser considerado panteísta (ou, mais precisamente, panenteísta) sustento que a analogia do ser depende de uma univocidade fundante, cuja negação levaria, ao meu ver, a duas possibilidades:
I – o mundo material não existe, pois Deus é a existência mesma. II- O mundo material é mal, pois Deus é o sumo bem. III- Deus é limitado e o mundo material tem uma existência própria, sendo a matéria má por limitar e prender o espírito nesta existência. Isso, claro, é o conhecido maniqueísmo. |
↑7 | Transformar Deus em um mero conceito abstrato foi uma das grandes catástrofes da filosofia moderna |