If the aspiration of philosophy was and is to comprehend intellectually the whole of Being its initial stimulus came from awareness of human imperfection“. [1] Kolakowski, L., Main Currents of Marxism, USA, Norton, 2008, p. 12
Uma das mais poderosas motivações para o ingresso na vida intelectual e na filosofia é a terrificante percepção da impotência que sentimos quando todo o quadro de referências – que nos dava suporte existencial – esvanece-se, como a fumaça expelida pelos negros lábios ressequidos de uma chaminé. Isso pode acontecer subitamente, como no caso do homem que se perde em densa floresta por dias a fio, e se confronta duramente com las ideas de los náufragos [2]Ortega y Gasset, J., La Rebelion de Las Masas, Segunda Parte, XIV, 7, 1929. “Instintivamente, lo mismo que el náufrago, buscará algo a que agarrarse, y esa mirada trágica, perentoria, … Continue reading , ou por etapas – como poderia ter sido com o escrivão Isaías Caminha [3] Barreto, L., Recordações do Escrivão Isaías Caminha, SP, Lafonte, 2019. , caso a opressão causada por suas sucessivas decepções com a sociedade não tivesse turvado o seu espírito.
Independentemente do caso, percebemos haver algo de defeituoso e transitório na vida humana, e os sentimentos gerados nestes fatídicos momentos, misturados a uma inclinação natural e certas crenças de base, podem definir uma atitude existencial que durará por toda a vida. Explorar sucintamente as raízes desta atitude é o objetivo deste artigo. Todos temos a experiência da fragilidade e da insuficiência da vida terrena, onde a morte e a finitude nos circundam sempre e em todo lugar. Se não damos conta do recado, precisamos recorrer às muitas possibilidades terapêuticas disponibilizadas pela cultura, seja a psicoterapia, a medicação psiquiátrica, o uso recreativo de drogas, a religião, etc; se formos fortes, suportaremos tudo com resiliência estóica.
Assim parece, ao menos, em um primeiro olhar menos sensível à natureza do homem – que se debate por entre as aflições do dia a dia. Nas profundezas abissais da alma, nos lugares que foram um dia colonizados no ocidente pelas tradições grega, patrística e escolástica – e, gradativamente, abandonados pela renascença e pelo iluminismo -, da combinação de elementos sutis, nasce um temperamento que predispõe, ao que parece, a ação individual no mundo. Félix Ravaisson captou essa disposição quando, em seu testamento filosófico, distingue, na história da filosofia [4]Sinclair, M., Félix Ravaisson, Selected Essays, Philosophical Testament, Bloomsbury Academic. , o herói do homem medíocre, Jose Luis Lopes Aranguren, na sua teoria do talante religioso [5] Aranguren, J. L. L., Catolicismo y Protestantismo Como Formas de Existencia, Madrid , Alianza Editorial, 1980, p. 15-41. , e Viktor Frankl, nos fundamentos de sua logoterapia. [6]Frankl, V., Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração, Porto Alegre, Sulina, 1987 (edição digital LeLivros), p. 95. “De tudo isso podemos aprender que existem sobre a … Continue reading
De um lado, podemos nos lembrar de Sócrates, em Fédon, absolutamente preparado para seu fatídico destino para além deste mundo, ancorado na pesada rocha de sua metafísica, inaugurando magistralmente a história da filosofia; de outro, os destrutivos e modernos movimentos gnósticos denunciados por Eric Voegelin [7] Voegelin, E., The New Science of Politics: An Introduction, The University of Chicago Press, 1987, p. 133-144 , assim como seu modus operandi messiânico delatado por Olavo de Carvalho. [8]Carvalho, O., Introdução à Filosofia de Eric Voegelin, Aula 02. De um lado, o herói que se sacrifica pela verdade; de outro, o monstro que devora mundos para saciar sua ambição desmedida. A centelha de bem que existe em nós parece reconhecer, com alguma facilidade, o ímpeto do herói e o significado de seu sacrifício – por mais que, muitas vezes, não saibamos colocar em palavras este sentimento.
O monstro devorador de mundos, por outro lado, causa um tipo de paralisação na inteligência. A busca pela destruição total, misturada a uma fantasia de que daí nascerá um mundo renovado e melhor, escapa às imaginações mais perspicazes de pessoas saudáveis – e, até mesmo, de inteligência superior. Aristóteles dizia que a poesia é mais filosófica (e mais elevada) do que a história, pois ela trata do que poderia ter acontecido e, portanto, mais do universal do que do particular. [9] Aristóteles, Poética, 1451a 38 – 1451b 10. Guardar na memória muitos episódios possíveis corresponde a um dos mais importantes aspectos do desenvolvimento da imaginação – que é, por sua vez, o único caminho para compreendermos o que parece à primeira vista incompreensível, afinal, homo sum; humani nil a me alienum puto (Terêncio, Heautontimoroumenos).
Se nada do que é humano nos deve causar estranhamento, devemos buscar aqueles que melhor expressam suas impressões sobre a experiência humana, de modo a torná-la translúcida: os poetas e romancistas. Um autor português, Ferreira de Castro, muito conhecido por sua obra prima, A Selva, nos traz, em um de seus romances do dito “ciclo memorialista”, pistas valiosas da psicologia por trás dos sentimentos de base do monstro gnóstico com garras messiânicas. Em Eternidade (1933), o engenheiro Juvenal padece amargamente com a perda de sua esposa. Como resultado, ele desenvolve uma sensibilidade para com a vida muito diferente do que vivenciara até então. O fundo do drama se dá na tensão entre a terrorífica visão heracliana da impermanência e transitoriedade de todas as coisas terrenas – inclusive da própria vida humana -, e o sonho parmenídico da estabilidade e da imortalidade (ao menos de tudo o que se ama). [10]Para uma introdução aos filósofos pré-socráticos ver Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., Os Filósofos Pré-Socráticos: História Crítica com Seleção de Textos, Fundação Calouste … Continue reading
O resultado é o velho sentimento gnóstico da falta de sentido e desamparo cósmico: “O universo é hostil e a humanidade é inviável”. [11]Carvalho, O., Aula 24, Curso Online de Filosofia. “Aluno: Ainda sobre a suposta existência de uma opressão instintiva condicionante das ações no homem (presente em algumas linhas … Continue reading Em andares ainda mais subterrâneos da psique do personagem, no entanto, nasce a centelha de uma esperança messiânica, não em Deus, não na transcendência, mas na promessa de um futuro melhor – onde os homens, com sua inteligência superior, domariam a morte, e cessariam o sofrimento humano para sempre. Essa mescla indissolúvel dos sentimentos de abandono celeste, e a esperança na promessa de um futuro salvífico hipotético, levam Juvenal a participar de uma revolução social sangrenta na Ilha da Madeira. Ferreira de Castro, além de um grande descritor de paisagens, também é mestre na expressão das tensões psicológicas, principalmente do homem pobre e oprimido, mas também do burguês amargurado.
Não é preciso dizer que minha brevíssima descrição da trama é absolutamente insuficiente, e não substitui a leitura da grande obra. Fica como recomendação para o leitor inteligente que, interessado em desenvolver sua imaginação para compreender os dramas reais da vida humana, possa, quem sabe, apaziguar um pouco aquele sentimento de incompreensão para com aqueles que estão tão distantes no espectro ideológico e existencial. Na arte da guerra, vale sempre a máxima de Sun Tzu: conheça o seu inimigo. [12] Sun Tzu On The Art of The War, Allandale Online Publishing, 2000, p. 11. “If you know the enemy and
know yourself, you need not fear the result of a hundred battles”.
References
↑1 | Kolakowski, L., Main Currents of Marxism, USA, Norton, 2008, p. 12 |
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↑2 | Ortega y Gasset, J., La Rebelion de Las Masas, Segunda Parte, XIV, 7, 1929. “Instintivamente, lo mismo que el náufrago, buscará algo a que agarrarse, y esa mirada trágica, perentoria, absolutamente veraz, porque se trata de salvarse, le hará ordenar el caos de su vida. Estas son las únicas ideas verdaderas: las ideas de los náufragos”. |
↑3 | Barreto, L., Recordações do Escrivão Isaías Caminha, SP, Lafonte, 2019. |
↑4 | Sinclair, M., Félix Ravaisson, Selected Essays, Philosophical Testament, Bloomsbury Academic. |
↑5 | Aranguren, J. L. L., Catolicismo y Protestantismo Como Formas de Existencia, Madrid , Alianza Editorial, 1980, p. 15-41. |
↑6 | Frankl, V., Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração, Porto Alegre, Sulina, 1987 (edição digital LeLivros), p. 95. “De tudo isso podemos aprender que existem sobre a terra duas raças humanas e realmente apenas essas duas: a “raça” das pessoas direitas e a das pessoas torpes. Ambas as “raças” estão amplamente difundidas. Insinuam-se e infiltram-se em todos os grupos; não há grupo constituído exclusivamente de pessoas direitas nem unicamente de pessoas torpes”. |
↑7 | Voegelin, E., The New Science of Politics: An Introduction, The University of Chicago Press, 1987, p. 133-144 |
↑8 | Carvalho, O., Introdução à Filosofia de Eric Voegelin, Aula 02. |
↑9 | Aristóteles, Poética, 1451a 38 – 1451b 10. |
↑10 | Para uma introdução aos filósofos pré-socráticos ver Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., Os Filósofos Pré-Socráticos: História Crítica com Seleção de Textos, Fundação Calouste Gulbenkian, 9ᵃ ed. |
↑11 | Carvalho, O., Aula 24, Curso Online de Filosofia. “Aluno: Ainda sobre a suposta existência de uma opressão instintiva condicionante das ações no homem (presente em algumas linhas filosóficas), o que podemos entender sobre as afirmações de alguns pensadores (dentre eles Schopenhauer) de que a razão não passa de um instrumento da Vontade, do impulso cego que constitui o homem e toda a realidade? Olavo: A experiência básica do Shopenhauer é de tipo gnóstica. O universo é hostil e a humanidade é inviável. Se você entender que tudo o que ele está dizendo é apenas uma expressão deste sentimento de base, você pode negar tudo e dizer que não lhe parece que seja tão ruim assim”. |
↑12 | Sun Tzu On The Art of The War, Allandale Online Publishing, 2000, p. 11. “If you know the enemy and know yourself, you need not fear the result of a hundred battles”. |